quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Diáspora de Dublin XI

Missa Cristã em Goa, Vitor Vicente, Dezembro de 2011

Nada melhor do que o impacto do Natal na Irlanda para avaliar o alcance universal da palavra de Yeshua (para os amigos e para os inimigos: Jesus Cristo) na História da Humanidade.
Para começar e para que conste: o Natal irlandês pára literalmente o trânsito, fecha lojas e escritórios; em suma, anula a azáfama citadina desde a manhã do dia 24 até à manhã do dia 28 de Dezembro. (Mais um esforço, ó irlandeses, e podeis ombrear com os israelitas e seu Hanukkah).
É certo que nada se compara à paralização operada pelos católicos e por cá. Contudo, e em  todo o mundo, nada nem ninguém logra passar despercebido à pseudo-data de nascimento de Yeshua. E o mais incrível é que toda a gente sabe que essa data é uma grande treta; desde os agnósticos que são anti-cristãos o ano todo e se rendem às rabanadas na noite da Consoada, passando pelos Judeus que não vêem o Messias naquele menino que nasceu em Belém, até aos islâmicos extremistas que têm raiva dele e ódio de quem lhe presta culto. 
Eis chegados ao ponto: todos temos uma palavra a dizer, uma posição sobre a vida do homem que, como nenhum outro, governa o curso do mundo. Ninguém lhe é indiferente, logo todos lhe reconhecemos (ainda que inconscientemente) importância. Um pouco como, hoje em dia, para com a América. Apaixonados ou completamente avessos pela cultura americana, sentados no sofá de comando remoto na mão ou a colar cartazes com a foto do "Tio Sam" e a grafitar a legenda: "Wanted: Dead or Alive" - todos deixamos a nossa energia ser consumida pela América.
Eu cá estou a consumir o cérebro por esta semana, todo o santo o dia, sair directamente do trabalho para o sofá; sem conseguir chegar a tempo de ir ao ginásio que, enquanto ainda for Natal por estas terras, fechará a horas próprias para católicos. 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Que horas são em Haaretz? V

Nadin, um Pub de Jerusalém, Vitor Vicente, Setembro de 2010

...São horas de celebrar o Hanukkah
Antes, ainda assim e como prometi, quero expressar a minha condenação pelo que se passou no Israeli Film Days, em Dublin. Olhem que  nem sou de condenar. Quanto muito, de criticar. 
Não percamos mais tempo. Um pequeno parênteses, feito de poucas palavras, é tudo o que preciso para manifestar a minha indignação.
Nas vésperas do evento, o Filmbase, organização que apesar de, há alguns meses atrás, ter cedido o mesmo espaço para o Festival de Cinema de Gaza, recebeu cartas a pedir o cancelamento do "evento sionista" e foi alvo de tentativas de assalto e de vandalismo. Os vândalos fizeram ver-se e ouvir-se à porta e dentro do recinto durante todos os dias do "dito evento sionista" Respectivamente: a chamar nomes simpáticos às pessoas (fossem elas simples cinéfilos, fossem quem fossem) que entravam e saíam do recinto e a dar "vivas à Palestina" e a apelar ao "boicoite contra o pseudo-Apartheid."
Uma verdadeira vergonha. Toda a gente tem direito a ter uma opinião - ou não, mas essa é outra questão. Mas toda a gente tem o dever de não invadir o espaço dos outros. Por acaso, alguém foi gritar para o Festival de Gaza? Não. A malta ficou em casa.  Cada qual, contente, na e com a sua quinta. 
Onde está a tolerância e o respeito mútuos que esta gente tanto apregoa? 
Mas é hora de comerorar. Hora de lançar luz e de lembrar o Talmud: "Vivam bem. É a melhor vingança".  
Happy Hanukkah!

domingo, 18 de dezembro de 2011

Viagística X

Teleférico de Hong Kong, Vitor Vicente, Setembro de 2011

Viver sempre com uma viagem à vista. Ser uma ilha ambulante. Sobreviver. 

sábado, 17 de dezembro de 2011

Diáspora de Dublin X

La Fitness - Dublin, Vitor Vicente, Julho de 2010

Last night, I left the Pub after the third pint...a fim de, esta manhã, cumprir a segunda sessão semanal de Spin.
Confesso: custa-me comungar através dos copos com os outros corpos. Chegar às outras almas, sei de antemão que não consigo, que jamais serei capaz; pela simples razão de que a noite é um baile de corpos de que esvaziaram o espírito.
Não, não me tornei anti-noite. Agrada-me a "petit-mort" que se e só se pode experimentar à luz de néons. Contudo, não aceito que a noite me comprometa o dia seguinte. Por isso - e, como estas micro-revoluções não se fazem sozinhos, também por me encontrar na Irlanda - começo a noite cedo.
E cedo levanto no dia seguinte. No caso do Sábado para a sessão de Spin. Onde, calado e às pedaladas, entro em comunhão com os outros corpos que, como eu, montam bicicletas para abater os abdominais.
Amanhã, Domingo - para quem não for tomado pela febre de Sábado à noite - amanhã há mais.

P.S - Esta fotografia não é do ginásio onde faço Fitness e levanto halteres. É do primeiro ginásio de Dublin onde me matriculei. Nesse dia deslumbrante em que, feita a matrícula, pela primeira vez senti que acabara de inaugurar um novo quotidiano.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Diáspora de Dublin IX

Goa - Mercado da Cidade Velha, Vitor Vicente, Dezembro de 2011

A Índia, ainda. Já não enquanto pátria propriamente dita. Antes enquanto pátria transmutada no que trouxemos dentro de nós e reencontramos no quotidiano. 
Primeiro, e principalmente, os pedintes. Dá vontade de lhes dar pontapés, de atirá-los da ponte, às águas frias do rio Liffey. Toda a gente soube - mesmo os que, como eu, não têm televisão em casa - do documentário sobre os pedintes que fazem turnos para se ajoelharem numa ponte ou perto de um ATM de Dublin.
Mas essa é a realidade da rua. Que conhecemos na do condição de transeuntes, de deambulantes armados e alimentados até aos dentes. Ao chegar a casa, ao sentir o conforto nos cumprimentar na cara, lembramo-nos do quanto e do quando nos lamuriámos por esse dia ter sido mais uma cópia de todos os outros dias. Porém, passámos a saber que são cópias a cores, que onde víamos cinzento e chuva, vemos agora abundância e arco-íris.  
Assim nos ofusca a nossa aparente opulência.
Até que, já semi-adormecidos, deparamos com um, dois, dez, uma data de indianos. Paramos e perguntamo-nos: que fazem aqui? Como se fossem personagens. Como se fossem pertença de um filme e se tivessem evadido do ecran. 
Assustados, acordamos. Nunca estamos preparados para que ponham à prova a nossa tolerância.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Lições da Índia - Anti-Semitismo

Agra - Taj Mahal, Vitor Vicente, Novembro de 2011

O mundo do turismo não é um outro mundo. Antes a continuação do quotidiano, meio que virado às avessas para Inglês não ver e rei se crer.
Muita da "visão prática" do turista é anti-semita. Basta pensar que o - chamemos-lhe assim - circuito judaico jamais é apresentado ou patrocinado por algum "agente alheio".  Também é certo que não é próprio do Judaísmo a preocupação em popularizar os seus lugares de culto ou até a sua cultura. Mas ainda não é menos certo que pouca gente se interessa por Israel e pelas Judiarias dessas Diáspora fora. Na verdade, as pessoas (podia dizer turistas) só tendem a interessar-se pelo que lhe pôem à frente dos olhos - e as restantes realidades, repugnadas, afastam com as costas da mão. Por aí se vê que o turismo não é propriamente diferente da conduta comum do dia-à-dia.
Existem preconceitos contra todas as etnias e religiões. Não escapam Hindus, Muçulmanos e Budistas. Ao mesmo tempo, existe toda uma falange de fascinados que confude os Hindus com o Gandhi multiplicado por mil, que adorava assistir a uma dança do ventre na Mesquita da esquina e que pensa que cada Templo no Tibete está repleto de túnicas andantes que transmitem paz e tranquilidade. 
Judeus? Alguns acham que já nem existem. Outro não, não gostam. Diriam: "Têm o dinheiro que eu não tenho. Que já é pouco e não me chega mais do que para ir de férias à Turquia comprar tapetes lá pra casa...".
A instantânea e ténue tolerância dos turistas não é para todos. 

P.S. - A fotografia dispensa legendas. Mas não dispensa lembrar que este Blog não é islãomofóbico. 

Lições da Índia - Isolamento

Jaipur - Pátio, Vitor Vicente, Novembro de 2011

Depressa percebi que não partilhava paisagens com os meus companheiros de viagem. Eu estancava antes coisas que não existiam no espaço. Que coisas, perguntam-me? Erupções do espírito, deprovidas de outra efectividade que não a do delírio andante.
A pouca magia e misticismo que encontrei na Índia resultaram da minha mente. É o meu sopro para suportar o tédio, a minha redenção da realidade. Na verdade, todos nós romantizamos a realidade. Uns a crer que chegam aos outros através de uma interacção que jamais comunica com o íntimo, outros a esgravatar no isolamento infinito e a decorá-lo com a muralha humana em redor.
Eis como a minha ilha ambulante deambulou pela Índia: aos tropeções em pernas, táxis e vacas. Sem outro intuito senão o de convocar a casa que só visito quando estou de viagem. Casa secreta e solitária. Que só eu conheço e onde me encontro. Onde respiro e, por fim, me sinto e existo. 

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Lições da Índia - Dinheiro

Encantadores de Serpentes - Jaipur, Vitor Vicente, Novembro de 2011

Se há um Deus único e adorado à escala universal, esse Deus dá pelo nome de Dinheiro. A diferença está no quanto somos devotos, até que ponto nos curvamos quando prestamos culto.
Havia que elencar toda uma mercenária estirpe, em suas várias faces e variadas feições. Tempo perdido para o presente propósito. Tempo - já lá diz o mandamento dos ditos devotos - tempo é dinheiro. Fiquemo-nos pelos indianos. Esses mesmos: os exóticos, os das túnicas. Suas túnicas dão pano para mangas - para planos debaixo das mangas.
Alguns indianos acham que o tempo dos outros é dinheiro. Eu explico com um exemplo: todos os táxis que apanhei na Índia, antes de me deixarem no destino acordado, fosse um hotel, um restaurante ou até o Taj Mahal, tentaram fazer-me parar num local onde pudesse fazer umas comprinhas que se reverteriam em comissões para os bem-intencionados dos motoristas. Como se eu não soubesse onde dormir e que comer; ao fim e ao cabo, os elementos mais básicos do viver humano. O cúmulo deu-se, certa tarde, quando tentei ver o Taj Mahal e tudo o que consegui visitar foi uma oficina onde se fazem cerâmicas com o mesmo mármore do dito monumento e ir a um teatro assistir a uma peça sobre a história do dito (digo, interdito?) monumento. 
Eu entendo que se queira tirar dinheiro aos turistas. É prática comum e corrente (um dia dir-se-á clássica) em todo o mundo. Mas não entendo que se engane deste modo. Senti-me uma máquina com que fazer dinheiro. Mais do que o meu dinheiro, senti que me estavam a tirar tempo. E o tempo é o mais precioso e privelegiado dos bens. Uma vez roubado, jamais é recuperado. Existe pior espécie de ladrões do que ladrões de tempo?
Por este e por outros motivos, devo dizer que esperava mais misticismo da Índia, que esperava uma atmosfera mais mágica, uma energia exótica, quase sagrada. Mas nada. Encontrei-me neste país com  pessoas que querem fazer dinheiro sem olhar a meio, sem tacto humano, à custa de qualquer caucasiano. Ainda falam dos americanos. Ainda falam dos judeus. 

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Lições da Índia - Nada

Goa - Junto a uma Igreja Portuguesa, Vitor Vicente, Dezembro de 2011

Nunca conseguiremos pesar o nada enquanto não tivermos o nada dentro de nós. Podemos, quando muito, medir a olho o quanto vale uma vida quando nada se tem a perder.
Ainda que à distância, vale a pena a ver: as crianças que dormem, desnudas, à porta da igreja ou na rua; a mãe que segura o bebé com um braço e com o outro pede pão; os enfermos que se movem a quatro patas ou que quase rastejam; as portas abertas do hospital de leprosos. 
São vidas, são ainda vidas. Vidas vencidas pela própria vida. Vidas que, quando e assim vistas, me fazem valorizar a minha e a tua vida. Vidas desprovidas de direcção, sem terra à vista onde sonhar por uma outra sorte. Sem saúde. Sem a chance de abençoar a dádiva divina que é a vida.
Divida-se a Índia entre pessoas pobres e principes podres. Detesto, e sempre detestarei agudas discrepâncias sociais. Mesmo que continue a ter o privilégio de poder aterrar e partir da Índia em Business Class, mesmo que me tenha movido de táxi em Jaipur, Agra, Deli e Goa. Odeio fossos destes. Odeio, odeio. 

P.S. A foto não retrata a muita miséria de que trata o texto. Há realidades tão violentas que me recuso a fotografar.  Não, não sou mais um europeu que fotografa os indianos como se fossem bichos do pântano, como se a Índia fosse um imenso zoo a céu aberto. 

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Lições da Índia - Indiferença

Goa - Cidade Velha, Vitor Vicente, Dezembro de 2011

Não mais mudar o mundo à maneira de Marx, nem mudar a vida para ir ao encontro da verdadeira vida como vaticinou Rimbaud. Ou talvez ambos, simultânea e sorrateiramente, sem que nada nem ninguém dê conta, enquanto me entretenho a enganar o tempo nesse acto diletante que é  viajar.  
Disse diletante, digo também ocioso. Porém, não o digo preguiçoso. A toda a hora, a qualquer momento e em qualquer parte do mundo, a sensibilidade é posta em causa. Ao fim e ao cabo, é continuamente apurada. Tanto maior o esforço, maior o choque.
Chamam-lhe choque cultural. Coisa pouca. Muitas vezes, para ter um choque cultural, basta abrir a porta de casa e ver os vizinhos. No caso da Índia, é um choque - mas um choque completo. Que passa pelas pessoas que vivem na penúria, até aos que abastecem o prato à custa de vender refeições numa qualquer cabana de uma qualquer praia de Goa e que dali não saem e que dali não sabem sequer para onde se vai. 
Gente que vive no mesmo mundo, que faz parte do mesmo século que nós, os que vivemos e viajamos à sombra de um salário. Eles não são mais nem menos humanos do que nós. Eles são apenas diferentes. É inútil tentarmos ser iguais. É ignóbil sentirmos indiferença. 

domingo, 27 de novembro de 2011

Ir à Índia IV


Nem houve lugar a divagar sobre outros lugares, nem a variações sobre velhas viagens. A ida à Índia tomou-me todo o meu tempo. Tomará também o tempo deste blog. 

P.S. Houve Haaretz. Haverá também o "report" das horas intercaladas entre Israel e Índia.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Que horas são em Haaretz? IV

Detector de Metais à entrada do Bairro Judeu - Jerusalém, Vitor Vicente, Setembro de 2011

Cheguei há bocado da gala de apresentação de "Israeli Film Days", no Filmbase, no centro de Dublin. Gala, diga-se desde já,  sabotada. Pelo circo do costume.
Logo à entrada, uma manifestação de pró-palestinianos entretinha-se a insultar todo aquele que entrasse no evento e a entoar cânticos de libertação de Gaza. Diante deles, o corpo policial fazia o que podia para conter os ânimos.
Antes de descer à sala de cinema, os espectadores tinham de se sujeitar a um detector de metais. Como se fossem apanhar um avião. Ao que isto já chegou: ter que passar um detectar de metais só para poder assistir a um filme!
Assim que começou a sessão solene de abertura, ouviram-se vivas à Palestina ou bocas anti-semitas. Já não eram os protestantes lá fora (que, debaixo de chuva, continuavam). Antes um infiltrado na plateia.  Durante os discursos do embaixador de Israel e da organização, também houve lugar a interrupções por parte de mais infiltrados. Alguns deles tinham até papéis para cuspir as palavras que conseguissem cuspir naqueles breves segundos em que os seguranças os punham lá fora (ao lado dos outros protestantes que, debaixo de chuva, continuavam).
Voltarei a este tema. Mais tarde. Prometo. Com menos tensão e mais tempo.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Viagística IX

Ventoinha no quarto de hotel - Buenos Aires, Vitor Vicente, Fevereiro de 2010

O dia da partida? Deixa ver. Quando, pela primeira vez, pensámos que havia mais realidade para além da rotina.

sábado, 19 de novembro de 2011

Ir à Índia III


"Passports are on my pockets", eis a sms que enviei aos meus amigos, assim que saí da embaixada da Índia. Em vez de sms, podía chamar de "text". Não gosto de usar a palavra "text". Parece-me uma palavra para aplicar a algo mais literário, mais inspirado. Mas no caso foi uma sms inspirada - logo, um "text".
Tenho ainda os passaportes em minha posse. Estão em cima da mesa de cabeceira. Curioso, abro-os. Comparo-os.
Atento, antes de mais, ao passaporte-ele-próprio. Faço visto grossa, por agora, aos carimbos. O passaporte francês não tem retratos de escritores, nem de figuras proeminentes. Nas folhas podem-se ver as regiões da França. Seria dificil eleger o par de escritores franceses. Pergunto-me: quem seriam os Camões e os Pessoas? Montaigne? Diderot? Voltaire? Sartre? Sade, quem sabe?
Passemos então aos esperados carimbos. Ambos os meus amigos, como bons franceses, têm o carimbo das Maurícias. O outro carimbo comum foi obtido na Jordânia. De resto, um deles não tem mais nenhum e o outro tem carimbos que cheguem para uma colecção. Em comum comigo, contudo, só o Brasil.
Segue-se a Índia, senhoras e senhores, de hoje a oito dias.

Diáspora de Dublin VIII

Irish Rail, Iarnród Éireann - Dublin, Vitor Vicente, Julho de 2010

Escrevo da estação de Heuston. Não estou à espera de embarcar, nem espero por ninguém embarcado. Escrevo desta estação com a urgência de partir e sem outro ponto de partida que não o papel.
Pensando bem, posso dizer que acabei de desembarcar nesta estação. Durante as últimas horas, consegui perder-me na cidade onde vivo.
A cidade onde vivo é um labirinto. Tudo o que é edifício e construção é cópia dos demais edifícios e construções. Os bairros sociais são iguais em todos os bairros onde, ao lado dos chamados bairros normais, os plantaram: com o fim de integrar os irlandeses com os irlandeses. Não há volta a dar. Dublin é uma cidade eminentemente homogénea. Enquanto capital, cabe-lhe cumprir o estatuto de arquétipo, de modelo a partir do qual se criam as demais cidades.
O ambiente é favorável à familiaridade. Onde quer que estejamos, dá a ideia de que já estivemos aqui. Pensamos que pertencemos a este país, ou pelo menos à paisagem deste país. Ou, no mínimo, que já fazemos parte desta cidade. Só que a familiaridade não traz nenhuma luz, tão-só um lusco-fusco que nos deslumbra e em nada nos ajuda. A beleza, sabemo-lo desde sempre, jamais foi talhada para a utilidade.
Podia agora apanhar um comboio para outra cidade. Não preciso. Atrás de mim, estende-se uma cidade em que ainda me posso permitir a perder-me. Uma cidade assim, que nos perde no encalço dos próprios passos, não pode saber a pouco. 

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Com a de-vida distância V

Temple Bar - Dublin, Vitor Vicente, Março de 2011

Conheci um português com uma enorme vontade de partir. Esteve em Dublin, a convite de um amigo comum, também português. Durante uma semana, o visitante sonhou de olhos abertos. Teve o paraíso a seus pés. Foi um César em todos os caminhos que trilhou.
Não o vi no dia em que teve de voltar para Portugal. Vi-o na véspera. A véspera é pior do que o dia da partida. A véspera pode ser um verdadeiro vexame. É quando mais sentimos que estamos a ser escorraçados. Que falácia é pensar-se que na véspera damos tudo o que temos e não temos dentro de nós. Não. Na última noite, por mais que queiramos dar algo ou deixar algo ao mundo, estamos semi-vazios. Como o copo que vai a meio e que, por qualquer estúpida superstição, não conseguimos terminar. Na véspera sentimo-nos a esvaziar. A evaporar. 
Este português ter-se-á defendido com a ideia de que, mais cedo ou mais tarde, terá que para cá voltar. Não mais como um breve vapor, antes de vez e para fazer vida. Com solidez, seriedade. Terá pensado, pergunto-me, que todos os sonhos não são sólidos nem sérios? Terá pensado que o mundo dos lúcidos é um território sujo e sórdido? Duvido. Quem  sonha tão alto jamais o alcança. Não tem outra pressa senão em soltar-se da âncora. Em libertar-se desse peso, desse gigantesco e tremendo peso. Para que, por fim, possa partir.

P.S. Revi-me no português que queria partir. Traguei-lhe os trejeitos que já não tenho, aplaudi-lhe as ânsias e incitei-lhe a fazer-se ao leme das mudanças. Foi a minha maneira de lhe retruibir por me permitir reviver-me a mim próprio, com a de-vida distância. 

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Variações sobre Velhas Viagens IX

Um dos cerca de cento e cinquenta canais de Veneza, Vitor Vicente, Maio de 2009 

A Veneza do século XXI pouco mais mantém de Marco Polo do que o Aeroporto a que atribuíram o nome do viajante.
Ainda assim, Veneza continua a ser uma cidade de valor venal. Ao invés de viver do comércio externo, de explorar a condição de porto privelegiado entre o Velho Continente e o Oriente, a Veneza de hoje vive de vender as suas entranhas aos turistas, de expôr o seu esplendor, a sua beleza. Esta cidade e seus cerca de cento e cinquenta canais são como uma velha prostituta. Parada no tempo, é certo. Charmosa, contudo.
Prometi a mesmo próprio que só voltaria a Veneza no Carnaval ou se tomado por uma paixão. As ruelas de Rialto e arredores só são desfrutáveis a dois ou imersos no baile de máscaras. Mas eis-me de volta a uma Veneza onde nunca estive - no encalço da biografia do viajante Marco Polo.

Variações sobre Velhas Viagens VIII

Final da Tarde no Mar Morto, Vitor Vicente, Setembro de 2010

Pronto, o Mar Morto não foi eleito para as Sete Novas Maravilhas da Natureza. Está feita a vontade de mais de meio mundo. Só interessava a Israel. Caso lograsse a conquista de um lugar, teriam dito que o júri era pró-judaico. Como não foi o caso, pronto ó Mar Morto, dá-se o caso por encerrado. Para gáudio dos que só ganham com a derrota de outrém.
Sendo assim, sobra-nos mais Mar Morto. Israel continuará imune a tempestades de turistas. Só flutuarão, à superfície do sal, os elitistas de espirito. 
Ó Mar Morto, quanto do teu sal são lágrimas diasporizadas por Portugal?  

Diáspora de Dublin VII


Guinness - Galway, Vitor Vicente, Março de 2011

A Irlanda, como ainda tem idade para se comportar como uma criança, pode-se permitir a certos caprichos. Como o narcisismo, que no caso das Pátrias é tido por nacionalismo. Ou a exaltação desmedida de si e de suas façanhas, que no caso das nações se nomeia épica de pacotilha. Isso sem que nada nem ninguém a leve a sério. Este país infantil e ternurento que é a Irlanda pode até ter o prazer de vender pão com a marca "Irish Pride". Sem que os países graúdos lhe venham pedir explicações ou a obriguem a pedir perdão. Era o que mais faltava. De tantos são os produtos com o autocolante, "Buy Me. I`m Irish", que abundam por esses supermercados de Dublin. 
Já o grande colosso germânico não pode cantar as glórias da casa. Se alguém sequer as ensaia, não tardam a temer e a espalhar o temor que o Terceiro Reich está de volta. Se cair uma telha na judiaria ali ao lado, então não faltarão acusações contra os alemães que se voltaram a achar os maiores. Isto enquanto, numa  esquina não muito distante, enquanto, dizia, não há clientes para a kebab, um dos muitos turcos por estas bandas se lembra de erguer a bandeira da Alemanha.
Na América todo o patriotismo é possível por se passar na América. Claro que é logo tido por tolice por parte dos comunistas e por sionismo por parte dos pró-palestinos. De resto, não creio que se faça caso. É cultural. Aceita-se como parte do chamado show off.   
Em Portugal, à falta de toalhas e de lençóis, usa-se a bandeirinha para tapar a miséria moral. Os nacionalistas de naftalina aproveitam a ocasião para fazerem ouvir a sua velha orquestra. Os esquerdistas chamam a atenção para um possível regresso do exército de fantasmas salazarentos e espalham o medo pelas sete quintas e quinas da Lusitânia. Fica conjugada a circunstância para todos tentarem fazer vingar os seus interesses, sem que no assunto sejam tidos nem achados nem chamados.
Em toda a parte, o miolo é mais do mesmo. Só a côdea cambia. Eu cá como do pão que o irlandês amassou.  E mais não digo: que eu saiba, ainda é  falta de educação falar de boca cheia. 

sábado, 12 de novembro de 2011

Variações sobre Velhas Viagens VII

Panorâmica do Rio de Janeiro, Vitor Vicente, Agosto de 2008


Muitos portugueses dizem "que já lá dizia o Poeta" sem fazer a menor ideia de quem é o Poeta. Trata-se de Fernando Pessoa, o poeta que mais é citado por pessoas que nunca lhe leram uma letra. Pessoa representa todo o tipo de português. Incluídos os incorrigiveis. Desde os iletrados, ignorantes, até aos próprios poetas, essa pária podre que são os poetas.
A condição de peste é próprio da vida de qualquer Poeta, em qualquer parte do globo. Não importa a Pátria: o Poeta sempre vai aparentar ser um apátrida. Não sei qualquer será o equivalente de Pessoa no Brasil. Mas sei que no meu Brasil seria Hilda Hilst.
Visitei a Casa do Sol, em Campinas, onde Hilda viveu e onde viviam alguns dos seus amigos. Trouxe alguns livros de poesia e muitas lembranças - as suficientes para, sempre que me chega alguma referência a Hilda, me doer o coração com saudades do Brasil.
A pedido da namorada da época, tirei uma foto ao lado da estátua de Drummond. Entretanto, soube que a estátua foi vandalizada. E eu a pensar que os políticos estavam a limpar as cidades, com vista à Copa e às Olímpiadas. Ah mas atentar contra os poetas, ah isso perdoa-se. Criminoso contra criminoso, concluem os corruptos, os putos do parlamento, podem muito bem combater e combater: até que não sobre ninguém para contar a história.

Diáspora de Dublin VI


O Trânsito mais longo do Mundo - Transiberiano, Vitor Vicente, Setembro de 2009

Por mais que o cansaço possa ser parte do quotidiano, por mais que a realide pareça sinónimo de desgaste, estou ainda convencido que todas as experiências são únicas e irrepetíveis e que, ao mesmo tempo, todas as experiências são uma experiência - a experiência do mundo. 
Considero o caso de viajar de comboio. Todas as vezes que viajo de comboio volto a andar no Transiberiano. Seja o trajecto de Dublin para Belfast ou o caminho de ferro que vai de Guangzhou até Schenzhen.
Gira o disco e toca o mesmo. A sequência é a de sempre. Só que o passo de qualquer dança, de tão milimétrica, jamais será como antes. Seja dança, seja exercício de ginástica.
No ginásio de Dublin, por vezes, tenho a sensação que todos os atletas estão sincronizados como a melhor orquestra de Viena. Estejam eles a trabalhar os trícepes, a pedalar na bicicleta ou a fazer flexões. Para mim é um facto: somos todos um corpo, movimentamo-nos todos dentro uns dos outros.
Assim seja. Assim como a play list aqui do gym é a mesmíssima todo o santo dia. Gosto de um ginásio assim - que me imponha uma rotina, uma disciplina.

Que horas são em Haaretz? III


Cidade Velha - Jerusalém, Vitor Vicente, Setembro de 2010

Nunca fui grande fã de fotografia. Durante algun anos, recusava-me a viajar com máquina fotográfica. Achava que tirar fotos distraía-me da escrita. Até ao dia em que anunciei fazer o Transiberiano e um coro de amigos convenceu-me a comprar uma máquina. Desde então não faço uma mala sem lá colocar a máquina.
Mas essa mudança deu-se largos anos depois do dia em que - ainda eu vivia em Portugal - fiquei estancado numa exposição de fotografia de Joshua Benoliel, na Fnac do Chiado. Na altura, como sempre, não dei importância. Apenas me deixara ficar impressionado. Facto consumado, que não me pôs a pensar nem um insignificante instante. 
Recentemente, voltei a ter contacto com a fotografia de Joshua Benoliel. O reeencontro deu-se nessa galeria imensa que é a Internet. O nome do autor - que quando se trata de fotografia não costumo fixar - soou-me familiar. Senti que entrei em contacto, através de um vaso comunicante, com um olhar que podia muito bem ser o meu, senti-me a ser olhado nos olhos. Naquele olhar tremendo e lúcido que, apesar de trazer à luz acontecimentos específicos e datados, retrata mais que o espírito de uma época - retrata o espírito humano.
Hoje, Joshua Benoliel obriga-me a ver as suas fotografias com redobrado olhar. A sua visão dos homens consegue fazer-me crer que todos nós já andamos aqui há mais tempo do que temos memória.
Como seria o olhar de Joshua Benoliel, em pleno século XXI, sobre Israel?

Com a de-vida distância IV


Bandeira Portuguesa no dia da final da Liga Europa - Dublin, Vitor Vicente, Maio de 2011

Comiamos castanhas como quem come pop corn. Podíamos até chamar-lhes de pipocas sazonais. Sabíamos que só as podíamos ter ali e agora, que logo esse sabor iria embora. Um sabor que se evaporava, volátil, como a própria vida. Que, um dia, seria levado para longe, por um qualquer vento e para uma qualquer terra que não conhecíamos e para onde nos apetecia partir.
Era um cheio que viajava no tempo e no espaço. Um cheiro viajável como uma sala de cinema. Como o cheiro das castanhas assadas que, hoje, voou até Dublin e me fez ter saudades dos doces finais de tarde, às Sextas e em Lisboa.
Ainda não sabia ao certo o significado do Shabat. Ainda não atribuíra uma cor a cada cidade. Na verdade, ainda não começara a conhecer cidades. Nem pensara que, algum dia, perderia a paciência por haver pouca paleta para tanto mundo. Ainda não conotara cada cidade com um cheiro.
Mas hoje cheguei a Lisboa através do cheiro. Ou melhor, no nevoeiro do carro do assador de castanhas de Joshua Benoliel. Não me resta outra maneira de voltar senão estas manhãs messiânicas e sebastianísticas. Vivo encoberto, vivo exilado. Com a de-vida distância.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Ir à Índia II



Ter que tirar o visto transforma toda a ideia da viagem. Não só quando o visto é tirado à queima-roupa, à chegada ao aeroporto. Sobretudo, quando o temos que tirar, com antecedência, antes ainda de apanhar o avião. Aí, a adrenalia sobe.
Sobe-nos o sangue. A embaixada surge-nos como o nosso primeiro passo nesse país que, embora dado o primeiro passo, não pisámos - ainda. O passo dado não é mais do que um passo falso.
Tiradas as medidas, medidas as intenções, lá nos darão o visto de entrada. Para nos lembrar que existem fronteiras, de facto e gravata. O pessoal da embaixada parece meio parado no tempo, ou saído de uma novela de Franz Kafka. 
No tempo de Kafka, ser aceite pela alfândega americana significava abrir a porta da terra dos sonhos. Há cinco séculos, na Pérola do Atlântico, partia-se para descobrir Índias. Eu  vou atrás da ventura dos meus antepassados. Já só sei ir em frente via revivalismo revitalizado.  

domingo, 6 de novembro de 2011

Variações sobre Velhas Viagens VI


Banco de troncos - Central Park de Nova Iorque, Vitor Vicente, Abril de 2011

Os idiomas revelam muito da personalidade dos povos. Os alfabetos fonéticos vão mais longe, mais fundo, até à alma. Abrem a alma, deixam-nos em contacto directo com ela, sem interlocutores, nem intermediários.
Neste sentido, encontro-me um pouco limitado para conhecer os povos. Tenho que me limitar aos três idiomas que falo e que me são minimamente familiares.
Primeiro, aquele que me é mais próximo: o Português. Considero macabro, de mau gosto o D de Dafundo. Preferia o D de dado. Seria perfeito. Como o E e Évora, que salienta a letra em todo o seu esplendor. De resto, o nosso alfabeto fonético mais parece um comboio regional. A de Aveiro, C de Coimbra e por aí fora - até ao V de Viseu. Para não falar que os lisboetas dizem P de Portugal e os portuenses dizem P de Porto.
O mesmo se passa com os espanhóis. M de Madrid, B de Barcelona. Só não sei se os catalanistas ou o bascos já encontraram alguma alternativa politica para E de España. Numa coisa, disso estou certo, é que são unânimes no N de Navarra. Mas alguém mais senão um espanhol nativo se vai lembrar de N de Navarra?
Já o Inglês, ou o também tido por Internacional, também tem os seus regionalismos. R de Romeo, J de Juliette. Ou será que Romeu e Julieta devem ser considerados personagens cosmpolitas? Fica lançada a questão. Eu cá gostava de ouvir C de Camões ou E de Eça de Queirós. E por que não? Já ouvi dizer "Y de Nova Iorque, mas só o Ypsilon". Como se não houvesse uma cidadezinha no Reino Unido chamada York. Como se só existisse Nova Iorque, se todos nós fôssemos Nova Iorque.

P.S. - Pode não parecer, mas este post é para provar a omnipresença de Nova Iorque nas nossas vidas. À leitura das almas através do alfabeto fonético voltaremos mais tarde. Até lá, pode ser que o País de Gales comece a mandar no mundo e alguém ouse dizer "G de País de Gales, mas só o G".

Com a de-vida distância III

Na Noite da Transilvânia - Cluj-Napoca, Vitor Vicente, Janeiro de 2009


A amizade é à prova do tempo. Não importa por quanto tempo estejamos distantes, nem a diferença horária entre a terra onde cada um ergueu a tenda. Os amigos não se medem aos fusos. Os amigos estão sempre lá, na hora H.
Os amigos vivem sempre na mesma franja horária. Mesmo quando estão longe, mesmo quando estão ausentes. Entres estes últimos, incluem-se também os mortos.
Mas não é hora de falar da morte. A morte já é uma certeza, mesmo quando para a farra não é chamada. É hora de falar do Facebook, de como essa ferramenta social nos permite acompanhar o movimento contínuo e ininterrupto do mundo através das actualizações dos nossos amigos.
Pensamo-nos o centro do mundo. Pensamo-nos e, num certo sentido, somos o centro do mundo. Pelo menos, o centro do nosso mundo. Como os outros serão o centro do seu mundo. Auto-centrados, todos contentes com isso, como se fosse um título, um estatuto, consideramos que uns vão à frente e outros ficaram para trás. Nós cá, no nosso canto, estamos posicionados no meio. Privelegiados, claro está. Vemos alguns amigos a preparem-se para ir para a farra enquanto outros acabam de acordar da farra anterior. Mais tarde, somos nós que estamos com pé e meio na party, enquanto outros desaparecem com mensagens de boa noite e outros vão publicando notícias sérias e lúcidas.
Compreendemos que a viver é um acto cíclico. Que os amigos vão e e vêm, em consonância com o movimento do mundo. Haja maré vazia de amizade ou dêem corpos de amigos à costa, nós assistimos a tudo com a de-vida distância.

Diáspora de Dublin V

Grafton Street - Dublin, Vitor Vicente, Março de 2011

O Poeta (Pessoa, se não me falha a memória) terá dito que o melhor do mundo são as crianças. Pode ser que assim seja em todo o mundo, menos nesses país infantil que é a Irlanda. Em que as crianças, debaixo do nariz complacente dos pais, correm pelos pubs, como se fossem pistas olímpicas.
E mais não digo, para manter a honra do convento e o bom nome da Diáspora.

Viagística VIII

 Tren Patagonico - San Carlos de Bariloche-Viedma, Vitor Vicente, Fevereiro de 2010

Socorremo-nos das salas de cinema para viajar às terras que se perderam no tempo e a que faltam meio de transporte para podermos voltar.

sábado, 5 de novembro de 2011

Variações sobre Velhas Viagens V

O Inverno de Cluj-Napoca, Vitor Vicente, Janeiro de 2009

Chegámos a Cluj-Napoca a altas e avançadas horas da noite. Deixadas as armas e as bagagens no Hotel Transilvânia, ao cuidado de um recepcionista muito magro, Olívio de seu nome, e que durante dois dias só vimos comer maçãs, deixadas as ditas, fomos à cidade para comer qualquer coisa.
Estava tudo fechado. O único estabelecimento aberto era um supermercado. Às cegas, como quem não sabe a coisa, comprámos um par de pães embalados.
Cá fora, assim que mordi o primeiro pão, praguejei um palavrão. O meu colega perguntou-me se não gostara do pão.
- Não. É que não tem nada dentro. Pão com pão. Pão.
Desatámos a rir. Eu acabara de ecoar um velho atleta do ginásio, dos anos da adolescência e que tinha por hábito involuntário acabar as frases como as começava. Por exemplo, se lhe perguntassem pelos músculos que iria trabalhar na sessão de hoje, o rapaz diria "Peito e bícep. Peito." Quem diria que, passados todos estes anos e tão longe, as suas famosas deixas se fizessem ouvir na Transilvânia?
Estávamos ainda a rir. Nem conseguíamos comer os pães. Naquele momento, toda a Roménia se resumia ao riso.

Viagística VII


Baía de Tromso - Noruega, Vitor Vicente, Agosto de 2010

Todos nós já tivémos um dia em que a rotina nos cortou a respiração. Precisámos de um outro país como de um pulmão.

O meio de transporte mais tradicional e mais moderno é o balão de oxigénio.

Não há pior agonia do que a asma de ter de ficar em casa.

Viagística VI

Berlin - Porta do Metro, Vitor Vicente, Novembro de 2009

Aparentemente, o cenário é o de sempre. O mesmo autocarro, à mesma hora, a transportar a mesma massa de passageiros.
Só que é Sexta. À Sexta de manhã, todos os passageiros brilham por se encontrarem prestes a terminar outra viagem de cinco dias. 
Mais ainda aqueles para quem o fim desta viagem marca o início de outra. São facilmente identificáveis por trazerem trolleys. Junto deles, todos apetrechados com objectos alados e com rodas, sentimo-nos passageiros pequenos e menores, passageiros faz-de-conta, de segunda categoria.
Desconhecemos o seu destino. Invejosos, imaginamos. Imaginamos até ao infinito. Levam-nos para longe. Agradecidos, perdoamos.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Variações sobre Velhas Viagens IV

Nova Iorque - Broadway, Vitor Vicente, Abril de 2011

É de comum conhecimento que o clássico "O Fantasma da Ópera" passa-se em Paris. Só que na minha cabeça a acção passa-se em Nova Iorque, em pleno e sujo século XXI. Sem damas nem nenhum dandy que as corteje, nada.
Comprei este livro em Dublin, é certo, alguns dias antes de voar para os Estados Unidos. Contudo, é como se o tivesse comprado do outro lado do Atlântico, como se sempre que o leio eu volte a estar na Big Apple, como se a América fosse um cerco e de nunca de lá tivesse saído.
Assisti a "O Fantasma da Ópera" na famosa Broadway. A rua (há quem lhe chame bairro) foi uma decepção. O espectáculo não. Para começar, a encenação - esplendorosa. Depois, uma acústica tremenda. Num nível de envolvimento que só os americanos poderiam executar. Ainda hoje ouço ecos desse espectáculo. Chega-me até a custar concentrar-me na leitura do livro de Leroux.
Na verdade, o meu livro já nem é o livro de Leroux. É o livro que me faz voltar a viajar por Nova Iorque. É que cada exemplar de cada livro é único e irrepetível. Como a vida. Como D`us. Como tudo o que participa da essência do sagrado.

Que horas são em Haaretz? II


Jerusalém - Porta de Sião, Vitor Vicente, Setembro de 2010

Trocaram o jovem soldado Shalit por mil prisioneiros palestinos. Seja. Há que honrar o preceito de salvar uma vida humana. Sempre.
Só que, mais do que mil facínoras à solta, Israel acabou de dar ideias a alguns países árabes. Ocorreram-lhes artimanhas como capturar uns soldados. Para mais tarde, pedi-los para a troca. Como os cromos das cadernetas que trocávamos, quando éramos crianças.
Parece brincadeira, mas a Palestina passou a pertencer à Unesco. Um pequeno passo para a independência, um grande passo para os islamistas estarem mais perto de poder destruir Israel.
Mas essa manobra ninguém viu. Nem que Shalit chegou pálido e magro diante das câmaras e que as suas primeiras palavras foram a pedir paz. Isto enquanto os palestinos foram soltos em carrinhas da cruz vermelha e, mal chegaram a casa (digo, a Gaza), gritaram que a luta (armada) e a guerra continuam. Isso também ninguém viu.
Nem que o Avante acabou de apontar os sionistas e os states como os responsáveis pela crise mundial. Na verdade, ninguém lê o Avante, a não ser nas capelas da foice vermelha. Menos lida ainda é a coluna de poesia do dito jornal. Quem gosta de poesia não abre o Avante e quem o abre não tem cá pachorra para os poetas, esses preguiçosos que nada fazem em prol de nada, que é como quem diz em prol do proletariado.
Só a poesia pode salvar Sião.

Com a de-vida distância II


Brasov - Cárpatos, Vitor Vicente, Janeiro de 2009

Enquanto vivi na Catalunya, viajei duas vezes com os meus pais. Uma a Amsterdão, a outra entre Paris e Bruxelas. Alguns colegas espanhóis tentaram convencer-nos a não querer conhecer a capital do continente: "Por que no te vas a Brujas?". Repeti: "Brujas?". Eles insistiram: "Si, tio. Brujas. En Belgica.". Pareceu-me ter percebido e dei uma palpite: "Ah Bruges!". E assentiram: "Eso es.". Só então entendi os espanhóis.
Entretanto, já entendera que o Halloween quase não existia em Espanha. Espantei-me. Em Portugal havia um crescendo de celebrações. Pensava eu que assim era em toda a Europa. Em Dublin toda a cidade o celebra. Durante dias. Como um Carnaval, com direito a traje a rigor e tudo. E em tudo o que é pub, nightclub e até restaurantes.. Em Barcelona "la noche de las brujas" passa em claro, excepto às discotecas dark e alguns pontos nocturnos pontuais.
O Halloween é melhor medidor de anglofilia. Quanto mais anexados à América, mais efusivos são os festins das abóbaras e afins. Além da América, todos os países anglófilos o comemoram com pompa e circunstância. Depois estão os países que, como Portugal, estão convencidos que tudo o que fale inglês nativo é nobre. E por aí fora, até à Espanha, até aos que vivem de costas para a civilização, como Cuba ou a Coreia do Norte.
O Halloween está para os Estados Unidos como o Carnaval para o Brasil. Já imaginaram como seria o impacto de um exército de vampirosos em Habana ou um desfile de mulatas no reino igualitário de Kim?
Eu não. A minha viagem foi outra. Deu-se no único club gótico de Dublin. Sempre que aterro num gueto deste cariz, não importa em que cidade, sinto que estou em Lisboa, que recuei aos anos idos e alcoólicos da adolescência. Sou então capaz de gestos e atitudes que supunha enterrados dentro de mim. Surge-me um monstro no meu próprio corpo. Eis o mais autêntico assombro de Halloween, eis-me a ter medo de mim. Eis-me a viver Portugal com a de-vida distância.

sábado, 29 de outubro de 2011

Diáspora de Dublin IV


Irlanda - A bordo da linha férrea Dublin-Sligo, Vitor Vicente, Agosto de 2010

Durante algum tempo, tive o hábito de atribuir uma côr a cada cidade que visitava. Associei o azul a Estocolmo, o laranja a Madrid, o verde a Dublin. Depois, cansei-me. Cansei-me de ter pouca paleta para tantos países, de não ter côres que chegassem para o tamanho do mundo.
Em Dublin, vista agora da perspectiva de residente, continua a reinar, soberano e absoluto, o verde. Por mais que, em Portugal, algumas pessoas tendem a lamentar-me que Dublin é uma cidade cinzenta. Alguns nem conhecem Dublin. Conhecem, se tanto e de um fim de semana, Londres. E por terem visto Londres, ao vivo ou num filme, acham que já conhecem todo o Reino Unido e que a Irlanda é ainda parte do Reino Unido.
Outro preconceito popular, este não só entre portugueses mas entre os latinos em geral, é que a côr do frio é o cinzento. Como se a neve fosse branca escura. Aqui em Dublin quase nem neva. Esta cidade nem se demarca das demais por ser fria. Isso é lá para os lados do Leste, caros latinos, não aqui no Norte. E mais, amigos latinos, os povos louros do Leste não são todos iguais aos povos louros do Norte da Europa. Ou também consideram certo que, abaixo da França, sejamos todos tidos por espanhóis ou italianos e que no Médio Oriente só há árabes e Mesquitas?
Dublin, caros latinos, é chuvosa. Quando chove, em temporada de Inverno, as temperaturas tendem a subir. Não é que se tratem de chuvas tropicais. Aqui podem cair todo o tipo de chuvas, a qualquer altura do ano. Até em pleno Verão, quando a cidade é iluminada durante quase todo o dia, quando o céu oferece um lento lusco-fusco, um crepúsculo capaz de parar o trânsito no dia em que todos os que estiverem ao volante forem poetas, ou, pelo menos, sensíveis à beleza do Poente.
Para isso a Poesia teria que abrir telejornais. A maior precipitação, mundial por sinal, é continuar a crer-se que a côr do frio é o cinzento. Como se não houvesse frio de céu claro e aberto, frio azul. Ou o frio verde e celta da Irlanda. Ou o frio azul-esverdeado que se sente à beira de todos os mares do mundo.

Variações sobre Velhas Viagens III

Hong Kong - Mar da China, Vitor Vicente, Setembro de 2011

Mas o Mar da China não conseguiu de todo fazer-me sentir em casa. Ao olhá-lo nos olhos, não aparenta ter nada de diferente dos demais mares. Nenhum traço oriental flagrante. Não emite sons que nos pareçam ditongos, não é amarelado, não é em bico.
O Oceano Pacífico também não me fez sentir em casa. Pelo contrário, certificou-me de que me encontrava longe. Fez-me pensar que mercadorias transportariam os navios que atracavam em Vladivostok. Imaginava se podia ser contrabordo, se o faziam às claras ou na calada da noite. À noite, através da janela do quarto de hotel, punha-me a contar navios como quem conta carneiros. Como quem não tem outra alternativa para conseguir adormecer, para levar de vencidos o fuso horário e a insónia.
Eis a prova viva, que deita por terra toda a objecção em como este argumento é mentira, de que o mar nunca é o mesmo. Já das pessoas, por mais que possam parecer diferentes, por mais que se esforcem em reivindincar identidades e forjar trejeitos típicos, não se pode dizer o mesmo. Mais depressa se encontram ecos de Europa e de Nova Iorque em Hong Kong, do que um búzio oriundo do Mar da China dá à costa de Casablanca.

Variações sobre Velhas Viagens II


Docas de Copenhaga, Vitor Vicente, Junho de 2011

A fotografia, como se pode ler na legenda, foi tirada em Copenhaga. A "foto de autor", à direita, também. Apesar de Copenhaga não estar propriamente no coração do Continente - a capital da Dinamarca é a ponte entra a Europa e a Escandinávia - esta fotografia é eminentemente europeia. Europeíssima.
Considero-me europeu pelo simples motivo de me sentir em casa em qualquer parte do continente. Podia até exagerar, apresentar-me como nascido na Europa, na província europeia de Portugal. Mas não. Ninguém nasce europeu. Torna-se europeu. Eu rima com europeu. Eu rima com outra coisa que não vem para o presente caso.
Ou então não sou europeu, mas sim atlântico-mediterrânico. À beira destas águas, sinto sempre que o cenário é familiar como o de  casa. Seja o Atlântico que banha o Brasil (onde, pela primeira vez, percebi que existia o estatuto de europeu), seja o Mediterrânico que se estende das praias até às efervescentes esplanadas de Tel Aviv. Sou até mais do mar do que da terra. Jamais enjoei embarcado e já passei mal no convívio terreno com a espécie.
Posso agora dizer que, em vez de europeu, sou atlântico-mediterrânico. E reconhecer que Paul Theroux tinha razão quando, certo dia, chamou a atenção dos literatos: The misperception is that the travel book is about a country. It`s really about the person who`s travelling.

Diáspora de Dublin III


Praça do Palácio Real - Copenhaga, Vitor Vicente, Junho de 2011

E o novo presidente da Irlanda é um poeta. Michael Higgins, de seu nome.
Nome que, diga-se, assenta melhor a uma das porfiadas cadeiras do poder do que à escreveninha esquizofrénica onde se redigem versos. Não digo isto por qualquer suspeita sobre este senhor. Se esta eleição fosse em Portugal, decerto que teria suspeitas. Como, algunos anos atrás, questionei as reais pretensões de Manuel Alegre. Mas não estou aqui para entrar em polémicas com ninguém. Longe de mim citar qualquer nome da Praça Pública e tratar os bois pelo nome próprio. Ainda que isso aumentasse o número de visitas do Blog. Tenho mais que fazer.
Tenho que dizer - é uma necessidade, e é sempre a necessidade que me obriga a escrever - que o meu olhar está nublado por uma certa inocência, uma lúcida ingenuidade sobre os irlandeses mediáticos e do mundo em geral. Com os de Portugal, por lá ter crescido, nem pensar. Para os de cá fora - adoro dizer, cá fora e não lá fora -  sai de mim um perdão instintivo e irreflectido, um deixa-passar de quem se acha distante, um deixa-passar de que não é nada comigo. Apenas aprovo, sem análise de espécie alguma e com toda a tolerância deste mundo e do outro.
Afinal, seja em que país for, tanto me faz a figura do presidente. O papel do presidente não é nada mais do que isso: representar um papel no regime corrupto até à medula que é a República. Para exercer tal cargo, sem olhar a interesses de terceiros, nem a meios para proteger partidos e parceiros, já temos o Rei. Sempre será mais sábio que alguém que confuda o Thomas Moore com o Thomas Mann. Ou que tenha uma Obra poética digna de arrebatar prémios de Jogos Florais. Mas eu, como disse, não quero cá entrar em polémicas com ninguém. Chega. Como disse, apenas aprovo, sem análise de espécie alguma e com toda a tolerância deste mundo e do outro.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Viagística V

Amanhecer em Drumnaochit - Escócia, Vitor Vicente, Dezembro de 2009

O verdadeiro viajante jamais será derrotado pelo desgaste. Ainda que conheça um crescente conforto em estar em casa e, às vezes, sinta que alguns lugares longíquos já não o consigam deslumbrar como antes, ainda assim, só lhe aumentará a vontade de viajar.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Viagística IV

Dublin  - Rathmines, Vitor Vicente, Julho de 2010

Caminhar pelo Bairro a horas nunca antes caminhadas. Descobrir bairros dentro do Bairro. Desbravar o desconhecido à beira de casa. Viajar.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

E por que não Poesia? II


Poema:  Charles Baudelaire
Vídeo: David Gautier

Que horas são em Haaretz? I

Tel Aviv - The Diaspora Museum , Vitor Vicente, Setembro de 2010

Praga, o virar de página. Deu-se, certo dia, no Bairro Judeu. A minha peregrinação nunca mais foi a mesma. Sem uma segunda intenção senão a de seguir os passos de Kafka, vi-me a viver ali, uns bons séculos atrás, a tratar tu por tu o quotidiano e a vizinhança.
Voltei a Praga, um par de anos depois, para responder ao pedido da minha então namorada. Nunca lhe contei do virar de página em Praga. Durante muito tempo, não contei de nada a ninguém. Guardei segredo. Guardei no mais recôndito canto do gueto.
Aprendi a deixar pendente, a conter os cavalos ao chegar às cidades. Já não me atiro como antes, nem me apronto a ripostar a quem me provocar com a primeira pedra. Amadureci.

P.S. Este é um apontamento sobre Haaretz. A foto, tirada em Tel Aviv, atesta-o.

Ir à Índia I


Falta mais ou menos um mês para ir à Índia. Irei com dois amigos. Estranho. É a primeira vez que viajo com mais de uma pessoa. Na verdade, já viajei  com os meus pais. Mas não conta para a estatísica, nem para esbater esta estranha forma de viagem. Considero os meus pais uma só pessoa. Mais, considero os meus pais o meu país. Operação tão simples como trocar os pontos aos is.
A Índia é o país exótico por excelência. Comparamos à Índia tudo o que seja misterioso, místico, tudo o que tenha traga como uma aura ou que se cubra com uma leve névoa. Como se na Índia todas as ilusões fossem possíveis pelo simples motivo de sucederem na Índia.
Simples, sim. Certamente mais simples que as nossas Índias interiores. Índias isoladas como uma ilha. Índias insondáveis, intransmíssiveis.

Viagística III


Guangzhou, ex Cantão, China - Times Square, Vitor Vicente, Setembro de 2011

Americans are never abroad. All is America.

(P.S. Este apontamento não tem tradução para Português, nem para Inglês que não o Inglês Americano. Muito menos é inteligível aos mentecaptos, aos anti-americanos primários e afins).

E por que não Poesia? I



Poema: C. B. Kavafy
Música: Vangelis
Leitura: Sean Connery

Com a de-vida distância I


Dublin - Rathmines, Vitor Vicente, Julho de 2010

Alguns amigos, os verdadeiros e afirmativos, aqueles a quem o ciúme pela alegria alheia jamais vem ao de cima, costumam comentar comigo no quanto fiz bem em "ter cavado deste buraco". Eu concordo - claro. A única maneira de sair de um buraco é cavar o próprio buraco. E abrir buracos dentro do próprio buraco. Até criar um complexo e sofisticado sistema de transporte inter-buracos.
Através desse meu buraco, vou vendo o que se passa em Portugal, no mundo - por aí fora. Sem fios, sem cabos (eu disse que o meu buraco era sofisticado), sobretudo pelo Facebook, tento perceber como é o Portugal de agora. Por vezes, parece-me que ainda foi ontem que me fui embora. Outras vezes, parece-me que foi há bastante tempo, que devo estar enganado e que nunca vivi senão aqui.
Pasmo-me em como poderia participar, hoje, dessa paisagem. Até que ponto poderia fundir-me ou destoar dela. Penso, penso demais. Divago, como quem viaja sem rota, nem aurora. Nada concluo, a não ser que tudo seria diferente, que eu não seria quem sou agora, que eu não veria as paisagens com os olhos de quem foi embora.
Por ora, sei que escondo-me, logo existo. Eis o silogismo do exilado. Não assisto a nada à distância de Dublin. Vejo tudo com a de-vida distância.

Variações sobre Velhas Viagens I


Vladivostok - Fim de Tarde, Vitor Vicente, Setembro de 2009

Assim que marco uma viagem, assim que, ansioso, começo a contar os dias no calendário, tenho também por hábito (sou homem de hábitos, de rotinas e rituais, mas essa é outra história..) consultar as previsões metereológicas para o dito destino. Mesmo que as previsões não alcancem mais do que os próximos dez dias e a data de aterragem esteja para além desse período.
Outro tique diletante - ou, se quiserem, outro anti-tédio - consiste em, nas mesmas páginas web, consultar previsões metereológicas para as cidades que, certo dia, visitei. É a minha maneira de poder voltar a vê-las. Tromso, Vladivostok, San Carlos de Bariloche são as mais recorrentes no meu itinerário de viagens a bordo das nuvens, às arrecuas.
O clima é o mais abstracto de uma cidade. Contudo, é a coisa mais concreta. É uma realidade inalienável, porém contornável. Poder-se ia dizer que existe como existe D*us - que o clima chega às cidades como um enviado de D*us.
Só conhece o clima aquele que pelo clima se fascina.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Diáspora de Dublin II



Belfast - Bairro Católico, Vitor Vicente, Outubro de 2011

Nada melhor do que atravessar a fronteira (outrora, fronteira de fogo) entre a Irlanda e Irlanda do Norte para pôr à prova o quão vão pode ser viajar para ver que tal se vive do lado de lá.
Um dos principais problemas da Irlanda, segundo os queixumes mais quotidianos, é ser uma ilha. Mas antes de virem para cá, pergunto-me, não sabiam? Não pensaram bem nisso antes de aqui assentarem arraiais? Não se deram nem ao trabalho de abrir um Atlas e tirar metade da tarde para estudar um pouco de Geografia? Numa ilha, o isolamento é encanto e magia - é auto-recriação, vertiginosa e contínua. Boring?, só para quem não sabe o que é ser (nascer) animal de arquipélago, animal em vias de extinção desde que a espécie descobriu formar uma sociedade e obrigar-nos a ganhar a vida como um bicho gregário.
Como se não bastasse o facto da Irlanda ser uma ilha - e, assim sendo, não se poder pegar no carro (há pessoas para quem as possibilidades de viajar se resumem a estar ao volante) e ir para o próximo país -, como se não bastasse isso da condição de ilhéu, e ainda acresce que é logo uma ilha e homogénea. A paisagem de qualquer cidade irlandesa é invariavelmente de povoada de paddys, pubs & pints. E o verde, sempre o verde. Na capital ou no country side, tanto faz.
Belfast, lá no Norte, não destoa, não é tão diferente. O centro, é certo, não envergonha qualquer cidade europeia. Só que, mal se dá dois passos, logo ao virar da esquina, começa o festival de fábricas e de armazéns que normalmente se encontra nos arredores. Entre os bairros católico e protestante, mantém-se o muro, agora aberto, farpado e tudo. Tudo, tudo incluídos os grafitis a pedir paz e os memoriais em honra dos mortos, tudo parte do folclore turístico que teima em não trazer curiosos à cidade. As mensagens nos muros parecem, ainda hoje, pintadas de fresco. E o cheiro a sangue, sabemos bem, continua a afligir muito boa gente.
De resto, para quem vem de Dublin, Belfast não é nada de surpreendente. A noite despe-se a rigor, com o troc troc torto que marca o ritmo das ruas do Temple Bar. Não, não estou a reclamar. Tenho aprendido a aceitar. Em Belfast, assimilei que, não importa de que lado da fronteira, somos todos filhos do fogo e que, um dia, seremos consumidos em cinzas comuns - que somos todos o sopro do mesmo Ser.
 

Seguidores