sábado, 24 de novembro de 2012

Volta ao Mundo, via Canadá e Coreia I

The Expatriate - Montreal, Vitor Vicente, Abril de 2011

Alguns pensam que sou um viajante snob, que se envaidece a vaguear de spa em spa e mais não faz do mundo que o mostruário da sua pretensa opulência. Outro acham que sou um mero mochileiro, palavra em portuñol, que, pelo que sei, não tem equivalente em Português, por ainda nos faltar a noção de turista que tweeta o seu itinerário a toda a hora e  se despoja do conforto e até da dignidade, em prol de querer (ou crer?) conhecer os quatro cantos do mundo e se dar ao capricho de cruzar-se com o curioso quotidiano daqueles animais a quem chama carinhosamente de locais.
Não pratico nenhum desses tipos de turismo. Aliás, eu não pratico qualquer tipo de turismo. Eu viajo. 
Considero mais exótica a rotina de escritório do que a realidade de aeroporto. Sinto-me mais em casa entre anjos anfíbios e alados afins. Mas essas itinerâncias não são chamados para o caso.
O presente caso (ou devo dizer os presentes casos?) é o par de paragens do meu plano de dar a volta ao mundo. A primeira parte apontei-a para o Canadá. O capítulo complementar será na Coreia - do Sul, claro está. Tudo isto em duas mãos cheias de dias. 
Digo, dez dias. Sem correrias. Sem snobismos de mochileiro a ver os bichos bípedes ou preguiça pseudo-principesca num certo sítio paradisíaco qualquer.
Sempre quis dar a volta ao mundo. Até o tenho feito, ainda que apenas às prestações. Desta feita, será duma assentada. Sem ter que assentar arraiais aqui e ali e erguer alicerces à pressa por não ter data de regresso.
Eu preciso do regresso. Das rotinas, dos rituais.  Do quotidiano a conta-gotas de calendário. Preciso tanto disso como de partir. 
Não, não sou um viajante que passeia a vaidade de spa em spa. Nem um mochileiro que se pavoneia por se sentar à mesa em pleno seio do país dos pobres. Não consigo ser assim em viagem. Nem na vida do dia-a-dia. 

domingo, 18 de novembro de 2012

Que horas são em Haaretz? IX

World Peace Center Office - Bairro Judeu de Jerusalém, Vitor Vicente, Junho de 2012

Todos nós, sem que a maioria de nós o saiba, nascemos e crescemos em cidades onde, outrora, se travaram guerras. No entanto, hoje em dia, com a tranquilidade asséptica da tecnologia, cremos viver em cidades-cerco, devidamente muralhadas, longe, para lá do alcance do mundo dos maus - e, assim sendo, nada nos poderá acontecer.
Durante os nossos períodos de lazer - vulgo, quando fazemos férias nos países onde os outros existem para que nós por lá possamos passear - vamos a cidades que também foram cenários de sangue e, se disso estamos a par, depressa o transformamos numa simpática tour patrocinada pela paz do Senhor. É o caso óbvio e mórbido de Berlim e de Belfast, a cidade aonde nada nem ninguém faz turismo, a menos que já viva na Irlanda ou, na mais longíqua da hipóteses, no Reino Unido - e que, quando chega à capital da Irlanda do Norte, dadas as poucas diferenças por estas bandas, nem pode tomar pelo tempo perdido o valente e fulgurante nome de viagem.
Eu também não sou, de todo, inocente. Vivo numa cidade que, recentemente, esteva em pé de guerra e, durante a minha segunda ida a Israel, devidamente contagiado pela calma dos locais, espraiei-me nas esplanadas, na praia e até mergulhei maneiras (digo maneiras por respeito a quem sabe nadar) no Mediterrâneo. Posto isto, não meto as mãos no fogo por mim, muito menos por ninguém. Quem estiver isento, como diz o velho provérbio, que atire a primeira pedra.
Bem visto o território (no caso, o territorio de Haaretz) já não será a primeira pedra. Os Palestinianos atiram  pedras todo o santo dia e até meteram as mãos no fogo. Não só  lançaram chamas ao sul de Israel, como já é costume. Desta feita, o fogo chegou às grandes cidades. Até a Jerusalém, repleta de árabes que, se atingidos, ninguém se chatearia - e quando digo ninguém, digo ninguém da parte dos próprios Palestinianos. 
E digo também Tel Aviv. Custa-me tanto ver Tel Aviv atacada. Vejo em Tel Aviv a tremenda vitória dos Israelitas em conseguirem construir no Médio Oriente uma cidade como qualquer outra. É por isso que, ao atacarem Tel Aviv, estão atacar toda e qualquer cidade civilizada, estão atacar a própria civilização. Estão a atacar a nossa própria cidade. Estão a atacar-nos, ponto.
Custa-me saber que há civis a tremer ao som das sirentes durante o dia, a acordarem ao som das sirenes a altas horas da noite. Custa-me saber da história (história, assim escrito, até parece ficção) de uma velhota que, incapaz de correr para os esconderijos, nos esconderijos deixou o colchão e lá passa vinte e quatro sobre vinte e quatro horas. Custa-me saber que existe crianças que crescem neste contexto de carnificina, que há cabrões que se servem das crianças como escudo e que, em vez de livros e de lápis de côr, enchem-lhes as mochilas com bombas e mandam-nas para o meio das multidões. 
Custa-me tanto tudo isto.
Custa-me ver que estão a chover mísseis em cidades onde também eu fui criança - porque todas as pessoas, ao recuperarem e assumirem um certo sentido de inocência e uma certa candura,  tendem a voltar a ser crianças quando viajam. 
Não admito que as minhas memórias deixem de existir no espaço. Que não possa voltar a um pedaço do mundo que é meu, a que quero voltar e mostrar aos meus . Não admito que me impeçam de voltar a ver os meus amigos que, neste momento, estão debaixo de fogo. 
Foda-se. É inaceitável que tudo isto deixe de existir. Que mais não possam existir que escombros.
Os terroristas são todos escrotos. Todos.
A televisão não mostra que Tel Aviv está a ser alvejada por mísseis. Quando muito, que os Israelitas possuem radares que desviam os ditos. E isso só é mencionado para comparar com o que se passa em Gaza. Onde os cobardes se escondem por trás dos escudos humanos. Onde os canalhas disparam mísseis no meio dos civis para, mais tarde, os civis sucumbirem em vez deles. 
Mas as televisões não mostram isso. Isso, que de tão inaudito me custa a dizer, isso são cidades onde voltei a ser criança e onde, quando menos esperava, voltei a crescer - eu só vejo no meu computador.
Todas os canais de televisão são uns escrotos. Tal como os terroristas. Uns canalhas. Todos. 

sábado, 17 de novembro de 2012

Diáspora de Dublin XXII

Centro de Dublin visto do Comboio Sub-Urbano, Vitor Vicente, Janeiro de 2012

Nalgumas casas na Catalunya tinha televisão, noutras não. Nos primórdios de Dublin também não tinha, mas agora o dito aparelho até se arrasta cá por casa. 
Mas vai sempre dar ao mesmo: a televisão condenada ao silêncio, a ser um mero objeto de decoração, ridicularizada, ao nível da jarra.
Às vezes, vejo televisão no ginásio. Tanto agora em Dublin, como antes em Barcelona. Vejo, mas não a ouço. Ouvir, só me ouço a mim, a viajar com o desfile de imagens das cidades onde nasci e onde acabei por vir viver.
Os sentimentos destas viagens são, todavia, completamente difererentes.
Em Barcelona experienciei o deslumbre. Era uma espécie de luz, de segunda infância, por me encontrar a morar num lugar onde a vida acontecia, onde o quotidiano dos outros era parte do mundo. Eu limitava-me a sentir parte duma cidade que, ainda assim, não me podia pertencer. Como uma mulher que, por mais que cortejamos, apenas permite que preenchemos a sua agenda  enquanto mais um mero pretendente.
De Dublin, seja em direto ou em diferido, dá-me um misto de pena e de revolta. Considero esta pequena-grande cidade demasiado parecida com um conto de fadas (incluindo os bairros sociais que, ao contrário do que é comum, estão integrados nos demais bairros) para que a possam passar no grande ecran. A população de Dublin parece-me ainda mais pateta e o verde ofuscante das paisagens dá ideia de se tornar opaco. Como se a capital da Irlanda, assim como toda a ilha, não se levasse suficientemente a sério para ser invadida pelo aparato bélico das câmaras.
Ou talvez seja esta crónica que não mereça seriedade. E mais não consiga transmitir que a minha má relação com a televisão.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Diáspora de Dublin XXI

Late Shop in Rathmines - Dublin, Vitor Vicente, Julho de 2010

Lembro-me de, algures na infindável Internet, ter lido um artigo sobre a actual importância dos restaurantes de kebab na paisagem das cidades europeias. A linhas tantas, recordo ainda, perguntavam: "Que seria das cidades do Velho Continente sem as carnes penduradas dos Restaurante Turcos?".
Dito assim, parece um artigo em prol da entrada da Turquia na União Europeia. Ou, dirão os mais desconfiados, tratar-se-á o autor de um desses europeístas e etnocêntricos que não querem que a Turquia vá mais longe do espaço europeu do que servir-nos à mesa.
Eu cá contento-me com os kekabs na mesa e os turcos longe das portas de Viena. Mas também não boicoto kebabs árabes, nem me arrasto quilómetros até encontrar o congénere israelita.
Também não é minha intenção tomar nesta crónica qualquer posição política. Não há aqui mais tema a pôr na mesa do que a própria mesa.
No caso, a mesa do Zaytoon, um restaurante Persa, onde vim pela primeira vez há coisa de cinco e tal anos atrás, quando ainda morava em Barcelona e estive em Dublin de visita. Na época, acostumado aos kebabs bons e baratos dos Paquistaneses do Raval, amaldiçoei os Persas e achei a refeição um roubo. Hoje, ou desde que moro em Dublin, é rara a semana que não vou ao Zaytoon. Já não o que está no Temple Bar, mas na Camden Street, a rua que, a seguir ao Temple Bar, tem mais bares por metro quadrado na cidade - assim como o melhor restaurante, logo a poucos minutos a pé de minha casa.
O facto do Zaytoon ser o melhor restaurante de kebab cá do sítio e, a situá-lo em Barcelona, arriscar-se-ia a ser o pior de toda a cidade, senão mesmo de toda a Catalunya - isso só abona contra as opções gastronómicas em Dublin. Ao contrário de Portugal, onde há várias ofertas para comer bem, ao contrário dos Portugueses em Dublin  que acham que cá só se come bem em casa, por só em casa se poder comer como em Portugal, desta cidade eu só encontro razão de queixa por se pagar demasiado por uma comida que, seja onde for, sabe quase sempre ao mesmo. 
Não é que as cidades se meçam aos kebabs. Mas os ditos, ao contrário do que por aqui e aí se diz, não sabem sempre ao mesmo. Nem são comida para, a altas horas da noite, se enfardar e atenuar o álcool - até porque são comida tradicional de muito país onde não há bares onde se beba com boca de beber. 
Nem o kebap é fast food, nem a cerveja é a cachaça dos pobres. Ambos podem ser refinados. Mas essa é outra história. Por aqui, vai-se continuar a ter proveito de kebap e cerveja de qualidade. 
Com licença.

sábado, 10 de novembro de 2012

Diáspora de Dublin XX

A Cultura de Pub em Galway, Vitor Vicente, Fevereiro de 2011

Nem à distância, nem de dentro. O ideal é ter passado por isso e agora analisar com a sobranceria altaneira de quem se assume alheado.
A análise, neste caso, é a Dublin. Mais propriamente a Dublin enquanto cidade nocturna. 
Não há grandes diferenças entre a Dublin de dia e a Dublin em modo noite. O único movimento brusco é o que acontece em qualquer cidade, enquanto cai a noite, e uma micro-cidade nasce no seio da própria cidade.
Tal como toda a Irlanda se parece a si própria, a paisagem nocturna só se assemelha a si e a mais nada nem a ninguém. Fenómeno que ocorre na capital, como nas cidades de província cá da ilha.
Os Pubs predominam. Multiplicam-se. Como aqui só se conseguem multiplicar as crianças. De resto, a noite irlandesa já é uma criança crescida e vacinada quando no Continente a noite ainda é uma criança recém-parida. No Verão, ou no pouco de Verão que é permitido ver-se por estas bandas, pode-se sair à noite em plena luz do dia.
Discotecas em Dublin - digo discoteas dignas desse nome, monstros de sete pistas e mil e um néons - nem vê-las. Cabe aos Pubs, em que a música é sempre a mesma todo o ano e de há uns bons anos para cá, transformar-se em discotecas. Um pouco como no Oriente, onde (Rússia incluída) os restaurantes viram karaokes e bares nocturnos.
Deve ser esse o motivo por que, desde que me mudei para Dublin, tanto se me dá o tipo de música. Dou prevalência às pessoas. Às vezes, à falta delas. Assim como à falta de música. Em suma, aprendi a lição de Dublin e, como nesta cidade a noite merece um sinal mais, sempre que saio - divirto-me. Empurrado por uma outra pint, isso é ponto assente.
Tão assente como a homogeneidade de toda a Irlanda. Como boa ilha, a Irlanda limita-se a imitar-se a si mesma. Em nenhuma outra cidade como Dublin é injusto dizer-se que é como comparar a noite ao pé do dia.
Compare quem queira. Compare e, se quiser, me contradiga. Eu cá, ciente de que é Sábado à noite, ficarei entre a cama e o sofá. 

sábado, 3 de novembro de 2012

Com a de-vida distância VIII

Passageiros à espera do Tren Patagónico - San Carlos de Bariloche (Patagónia) 
Vitor Vicente, Fevereiro de 2010

Todos os terminais, de autocarros, comboios, barcos ou aviões, são termómetros do tempo. Tirando quem lá trabalha e que apenas espera o fim do turno, um ou outro diletante que mais não espera que aconteça qualquer coisa que o possa desaborrecer sem que isso o apoquente, tirando estes, há sempre alguém à espera de alguém. Seja à espera de alguém que vai chegar, seja a partir para um lugar onde alguém esteja à sua espera.
Elevados à mais alta das esperas, a espera entre estrelas, espera inter-estrelar, os aeroportos são uma espécie de sala de espera suspensa no ar e às avessas. Não há outro lugar onde as emoções estejam tão escancaradas, tão á flor da pele, tão espetacularmente autênticas.
No fundo, o próprio mundo é uma  sala de espera, que se espreguiçou e se tornou um pouco maior que o costume e que o esperado. Viver, enfim, é estar à espera. Mesmo escondidos, à espreita, a olhar de esguelha, nalguma esquina ou expostos à descarada, somos sempre surpreendidos pelo próprio soslaio. Esperamos, logo existimos.
Eu conheci salas de espera de toda a espécie. Desde o dentista de Dublin onde fui a semana passada, até a todas as portas de embarque de todos os aeroportos onde fiz figas para fazer valer o meu bilhete stand by.
Diria que todas as salas de espera deste mundo e do outro são sempre a mesma. A mesma ansiedade, a mesma paciência. A pressa personificada na diferença de cada pessoa.
Mas nada vi que se pareça aos prédios residenciais de porta semi-aberta e candeeiro vermelho no tecto, algures num infame bairro de Atenas. Onde, logo à entrada, vi tipos fazerem fila num banquinho, enquanto aguardavam a sua vez de serem chamados para comprar a  cópula de circunstância no rés-de-chão direito ou esquerdo, consoante fosse o freguês que se despachasse mais cedo.
Filas gregas. Filas indianas. As diferentes maneiras de estar à espera. Como posso comparar os dentistas de Dublin aos de Portugal? Tão despidos de cerimónias, de secretárias, de importancidades - tão irlandeses.  Só os posso comparar aos médicos cá da cidade, que nos medem a febre com uma mão e nos cobram os cinquenta euros da consulta com a outra. 
Com maiores ou menores semelhanças, volto sempre a Portugal, sempre que me volto a sentar numa sala de espera. O tempo das salas de espera é o mesmo tempo das distantes tardes febris que passei na infância, deitado, a observar as intermináveis paredes do meu quarto. O tempo das salas de espera é o tempo dos que adoecem de tédio e no tédio encontram a terapia contra tudo e contra todos. 
No meu caso, o tédio é ainda o tempo em que me é permitido o privilégio de estar de novo perto de  Portugal, com a de-vida distância. 
 

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