quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Volta ao Mundo, Via Canadá e Coreia III


Gyeongbokgung - Seoul, Vitor Vicente, Dezembro de 2012

Antes de mais nada, ainda no ar, ou no tão no ar que se pode estar quando aceitamos estar num avião, enfim, acima de tudo e antes de mais nada, os divinos Noodles. Cujo cheiro (curioso, o primeiro contato costuma ser dado pelo olfato) me abriram os olhos adormecidos e mos arredondaram até ficarem em bico – e ainda me puseram em estado de extâsia até encontrar o tripulante que me restituísse o copo a que tinha direito com os belos dos Noodles a boiar lá dentro.
A seguir, já nessa mega cidade que é Seoul, os neons. A anunciar comida, massagens e outras indizíveis coisas que eu sei lá e que só se leem em Seoul e em cidades asiáticas que, aos olhos estrábicos dos europeus e aos ciclopes dos ocidentais continentais, parecem sempre afins. Os neons que, tal era o predomínio da noite sobre o dia, davam a ilusão de se reproduzir. De crescer, de se multiplicar que nem cogumelos. Quanto mais se multiplicavam, maior o mistério. Dir-se-ia que as letras dos neons eram um alfabeto. O alfabeto do absurdo.
Não a seguir, mas sim sempre, sempre, a neve. A cair na cabeça, no corpo, na cidade toda. Nesta Coreia e na outra. Nem conseguia pensar como seria na outra Coreia, o cair da neve em cima das pessoas que têm a cabeça e o corpo todo a descoberto pelo frio e pela fome. A neve não nos deixou ir à fronteira. Mas deixou-nos andar calmamente pela cidade. Como se a neve nada fosse. Como se não houvesse caminho que nos levasse  para fora desta terra nevada. Aconchegante e abençoada.
Quais luzes de Natal e pistas de patins em New York, qual quê? Os intermitentes neons e a inesperada neve da Coreia, isso é que é.
Mais sarcástico que isso é ter chegado a Coreia vindo do Canadá. E da Coreia voltar para o Velho Continente. Com a indiferença altiva de quem cataloga todo e qualquer acontecimento mundano - desses que abrem noticiários, se repetem e repetem no rodapé e fazem manchetes e se discutem nos quiosques - como meros atos de cumprir calendário.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Volta ao Mundo, Via Canadá e Coreia II

Beautiful British Columbia - Canadá, Vitor Vicente, Novembro de 2012


Aspirado o cheiro a cidade, avistadas as montanhas e o mar da janela do quarto, eis que chegam os amigos. Vêm-nos buscar.
Levam-nos a Granville Island, Stanley Park, Jewish Community Centre, não necessariamente por esta ordem. Nos entretantos, paramos junto de um porto e para um tenro pequeno-almoço.
Tudo isto a caminho de Whistle. Caminho celestial, à beira das brumas. Como quem navega entre nuvens e, à medida que sobe a colina, se sente crescer. Até atingir a frágil condição colossal do glaciar.
No banco de trás, eu e a minha. Ao volante, vai ele. Ao lado, vai ela. Ele ilhéu, logo autista e errante, logo aéreo. Ela expansiva e afetiva que nem uma estrela. A de David, claro está. Juntos têm quase trinta anos de casa às costas. Canadá acima, Canadá abaixo.
Eu, mais indolente que um ilhéu e mais insolente que um moço dos trópicos, eu no banco de trás, que nunca habitei os capots com ou sem tejadilho senão afundado no banco de trás, eu a conjugar, em silêncio como quem reza, o verbo onde na minha e na pessoa da minha princesa. A tentar metamorfosear o onde e o quando na medonha palavra do mundo. No futuro mais que imperfeito deste mundo e do outro.
Posto isto, postulados aquele e o outro, chega-se a Whistle. Vê-se e ouve-se neve. Não à séria, como dias depois sentiu-se em Seoul. Só que aqui temos os amigos e a solidão. É sempre assim. Seja em Seoul, seja em Vancouver.
Voltamos a Vancouver que foi de onde, afinal de contas, tínhamos acabado de chegar e, daqui a pouco, teríamos que partir. Nada mudou, porque nada mudou por termos chegado, nem mudará por termos partido. O cheiro a cidade continua por cá, a muralha de mar e de montanhas também. Assim como o viveiro de junkies no centro da cidade.
Despedimo-nos dos amigos com a promessa de nos voltarmos a ver do lado de cá do Canadá. Sabemos que, independentemente das itinerâncias, a único porta interdita é a de saída do coração. Sabemos isso por a única certeza é saber-nos sós.

sábado, 24 de novembro de 2012

Volta ao Mundo, via Canadá e Coreia I

The Expatriate - Montreal, Vitor Vicente, Abril de 2011

Alguns pensam que sou um viajante snob, que se envaidece a vaguear de spa em spa e mais não faz do mundo que o mostruário da sua pretensa opulência. Outro acham que sou um mero mochileiro, palavra em portuñol, que, pelo que sei, não tem equivalente em Português, por ainda nos faltar a noção de turista que tweeta o seu itinerário a toda a hora e  se despoja do conforto e até da dignidade, em prol de querer (ou crer?) conhecer os quatro cantos do mundo e se dar ao capricho de cruzar-se com o curioso quotidiano daqueles animais a quem chama carinhosamente de locais.
Não pratico nenhum desses tipos de turismo. Aliás, eu não pratico qualquer tipo de turismo. Eu viajo. 
Considero mais exótica a rotina de escritório do que a realidade de aeroporto. Sinto-me mais em casa entre anjos anfíbios e alados afins. Mas essas itinerâncias não são chamados para o caso.
O presente caso (ou devo dizer os presentes casos?) é o par de paragens do meu plano de dar a volta ao mundo. A primeira parte apontei-a para o Canadá. O capítulo complementar será na Coreia - do Sul, claro está. Tudo isto em duas mãos cheias de dias. 
Digo, dez dias. Sem correrias. Sem snobismos de mochileiro a ver os bichos bípedes ou preguiça pseudo-principesca num certo sítio paradisíaco qualquer.
Sempre quis dar a volta ao mundo. Até o tenho feito, ainda que apenas às prestações. Desta feita, será duma assentada. Sem ter que assentar arraiais aqui e ali e erguer alicerces à pressa por não ter data de regresso.
Eu preciso do regresso. Das rotinas, dos rituais.  Do quotidiano a conta-gotas de calendário. Preciso tanto disso como de partir. 
Não, não sou um viajante que passeia a vaidade de spa em spa. Nem um mochileiro que se pavoneia por se sentar à mesa em pleno seio do país dos pobres. Não consigo ser assim em viagem. Nem na vida do dia-a-dia. 

domingo, 18 de novembro de 2012

Que horas são em Haaretz? IX

World Peace Center Office - Bairro Judeu de Jerusalém, Vitor Vicente, Junho de 2012

Todos nós, sem que a maioria de nós o saiba, nascemos e crescemos em cidades onde, outrora, se travaram guerras. No entanto, hoje em dia, com a tranquilidade asséptica da tecnologia, cremos viver em cidades-cerco, devidamente muralhadas, longe, para lá do alcance do mundo dos maus - e, assim sendo, nada nos poderá acontecer.
Durante os nossos períodos de lazer - vulgo, quando fazemos férias nos países onde os outros existem para que nós por lá possamos passear - vamos a cidades que também foram cenários de sangue e, se disso estamos a par, depressa o transformamos numa simpática tour patrocinada pela paz do Senhor. É o caso óbvio e mórbido de Berlim e de Belfast, a cidade aonde nada nem ninguém faz turismo, a menos que já viva na Irlanda ou, na mais longíqua da hipóteses, no Reino Unido - e que, quando chega à capital da Irlanda do Norte, dadas as poucas diferenças por estas bandas, nem pode tomar pelo tempo perdido o valente e fulgurante nome de viagem.
Eu também não sou, de todo, inocente. Vivo numa cidade que, recentemente, esteva em pé de guerra e, durante a minha segunda ida a Israel, devidamente contagiado pela calma dos locais, espraiei-me nas esplanadas, na praia e até mergulhei maneiras (digo maneiras por respeito a quem sabe nadar) no Mediterrâneo. Posto isto, não meto as mãos no fogo por mim, muito menos por ninguém. Quem estiver isento, como diz o velho provérbio, que atire a primeira pedra.
Bem visto o território (no caso, o territorio de Haaretz) já não será a primeira pedra. Os Palestinianos atiram  pedras todo o santo dia e até meteram as mãos no fogo. Não só  lançaram chamas ao sul de Israel, como já é costume. Desta feita, o fogo chegou às grandes cidades. Até a Jerusalém, repleta de árabes que, se atingidos, ninguém se chatearia - e quando digo ninguém, digo ninguém da parte dos próprios Palestinianos. 
E digo também Tel Aviv. Custa-me tanto ver Tel Aviv atacada. Vejo em Tel Aviv a tremenda vitória dos Israelitas em conseguirem construir no Médio Oriente uma cidade como qualquer outra. É por isso que, ao atacarem Tel Aviv, estão atacar toda e qualquer cidade civilizada, estão atacar a própria civilização. Estão a atacar a nossa própria cidade. Estão a atacar-nos, ponto.
Custa-me saber que há civis a tremer ao som das sirentes durante o dia, a acordarem ao som das sirenes a altas horas da noite. Custa-me saber da história (história, assim escrito, até parece ficção) de uma velhota que, incapaz de correr para os esconderijos, nos esconderijos deixou o colchão e lá passa vinte e quatro sobre vinte e quatro horas. Custa-me saber que existe crianças que crescem neste contexto de carnificina, que há cabrões que se servem das crianças como escudo e que, em vez de livros e de lápis de côr, enchem-lhes as mochilas com bombas e mandam-nas para o meio das multidões. 
Custa-me tanto tudo isto.
Custa-me ver que estão a chover mísseis em cidades onde também eu fui criança - porque todas as pessoas, ao recuperarem e assumirem um certo sentido de inocência e uma certa candura,  tendem a voltar a ser crianças quando viajam. 
Não admito que as minhas memórias deixem de existir no espaço. Que não possa voltar a um pedaço do mundo que é meu, a que quero voltar e mostrar aos meus . Não admito que me impeçam de voltar a ver os meus amigos que, neste momento, estão debaixo de fogo. 
Foda-se. É inaceitável que tudo isto deixe de existir. Que mais não possam existir que escombros.
Os terroristas são todos escrotos. Todos.
A televisão não mostra que Tel Aviv está a ser alvejada por mísseis. Quando muito, que os Israelitas possuem radares que desviam os ditos. E isso só é mencionado para comparar com o que se passa em Gaza. Onde os cobardes se escondem por trás dos escudos humanos. Onde os canalhas disparam mísseis no meio dos civis para, mais tarde, os civis sucumbirem em vez deles. 
Mas as televisões não mostram isso. Isso, que de tão inaudito me custa a dizer, isso são cidades onde voltei a ser criança e onde, quando menos esperava, voltei a crescer - eu só vejo no meu computador.
Todas os canais de televisão são uns escrotos. Tal como os terroristas. Uns canalhas. Todos. 

sábado, 17 de novembro de 2012

Diáspora de Dublin XXII

Centro de Dublin visto do Comboio Sub-Urbano, Vitor Vicente, Janeiro de 2012

Nalgumas casas na Catalunya tinha televisão, noutras não. Nos primórdios de Dublin também não tinha, mas agora o dito aparelho até se arrasta cá por casa. 
Mas vai sempre dar ao mesmo: a televisão condenada ao silêncio, a ser um mero objeto de decoração, ridicularizada, ao nível da jarra.
Às vezes, vejo televisão no ginásio. Tanto agora em Dublin, como antes em Barcelona. Vejo, mas não a ouço. Ouvir, só me ouço a mim, a viajar com o desfile de imagens das cidades onde nasci e onde acabei por vir viver.
Os sentimentos destas viagens são, todavia, completamente difererentes.
Em Barcelona experienciei o deslumbre. Era uma espécie de luz, de segunda infância, por me encontrar a morar num lugar onde a vida acontecia, onde o quotidiano dos outros era parte do mundo. Eu limitava-me a sentir parte duma cidade que, ainda assim, não me podia pertencer. Como uma mulher que, por mais que cortejamos, apenas permite que preenchemos a sua agenda  enquanto mais um mero pretendente.
De Dublin, seja em direto ou em diferido, dá-me um misto de pena e de revolta. Considero esta pequena-grande cidade demasiado parecida com um conto de fadas (incluindo os bairros sociais que, ao contrário do que é comum, estão integrados nos demais bairros) para que a possam passar no grande ecran. A população de Dublin parece-me ainda mais pateta e o verde ofuscante das paisagens dá ideia de se tornar opaco. Como se a capital da Irlanda, assim como toda a ilha, não se levasse suficientemente a sério para ser invadida pelo aparato bélico das câmaras.
Ou talvez seja esta crónica que não mereça seriedade. E mais não consiga transmitir que a minha má relação com a televisão.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Diáspora de Dublin XXI

Late Shop in Rathmines - Dublin, Vitor Vicente, Julho de 2010

Lembro-me de, algures na infindável Internet, ter lido um artigo sobre a actual importância dos restaurantes de kebab na paisagem das cidades europeias. A linhas tantas, recordo ainda, perguntavam: "Que seria das cidades do Velho Continente sem as carnes penduradas dos Restaurante Turcos?".
Dito assim, parece um artigo em prol da entrada da Turquia na União Europeia. Ou, dirão os mais desconfiados, tratar-se-á o autor de um desses europeístas e etnocêntricos que não querem que a Turquia vá mais longe do espaço europeu do que servir-nos à mesa.
Eu cá contento-me com os kekabs na mesa e os turcos longe das portas de Viena. Mas também não boicoto kebabs árabes, nem me arrasto quilómetros até encontrar o congénere israelita.
Também não é minha intenção tomar nesta crónica qualquer posição política. Não há aqui mais tema a pôr na mesa do que a própria mesa.
No caso, a mesa do Zaytoon, um restaurante Persa, onde vim pela primeira vez há coisa de cinco e tal anos atrás, quando ainda morava em Barcelona e estive em Dublin de visita. Na época, acostumado aos kebabs bons e baratos dos Paquistaneses do Raval, amaldiçoei os Persas e achei a refeição um roubo. Hoje, ou desde que moro em Dublin, é rara a semana que não vou ao Zaytoon. Já não o que está no Temple Bar, mas na Camden Street, a rua que, a seguir ao Temple Bar, tem mais bares por metro quadrado na cidade - assim como o melhor restaurante, logo a poucos minutos a pé de minha casa.
O facto do Zaytoon ser o melhor restaurante de kebab cá do sítio e, a situá-lo em Barcelona, arriscar-se-ia a ser o pior de toda a cidade, senão mesmo de toda a Catalunya - isso só abona contra as opções gastronómicas em Dublin. Ao contrário de Portugal, onde há várias ofertas para comer bem, ao contrário dos Portugueses em Dublin  que acham que cá só se come bem em casa, por só em casa se poder comer como em Portugal, desta cidade eu só encontro razão de queixa por se pagar demasiado por uma comida que, seja onde for, sabe quase sempre ao mesmo. 
Não é que as cidades se meçam aos kebabs. Mas os ditos, ao contrário do que por aqui e aí se diz, não sabem sempre ao mesmo. Nem são comida para, a altas horas da noite, se enfardar e atenuar o álcool - até porque são comida tradicional de muito país onde não há bares onde se beba com boca de beber. 
Nem o kebap é fast food, nem a cerveja é a cachaça dos pobres. Ambos podem ser refinados. Mas essa é outra história. Por aqui, vai-se continuar a ter proveito de kebap e cerveja de qualidade. 
Com licença.

sábado, 10 de novembro de 2012

Diáspora de Dublin XX

A Cultura de Pub em Galway, Vitor Vicente, Fevereiro de 2011

Nem à distância, nem de dentro. O ideal é ter passado por isso e agora analisar com a sobranceria altaneira de quem se assume alheado.
A análise, neste caso, é a Dublin. Mais propriamente a Dublin enquanto cidade nocturna. 
Não há grandes diferenças entre a Dublin de dia e a Dublin em modo noite. O único movimento brusco é o que acontece em qualquer cidade, enquanto cai a noite, e uma micro-cidade nasce no seio da própria cidade.
Tal como toda a Irlanda se parece a si própria, a paisagem nocturna só se assemelha a si e a mais nada nem a ninguém. Fenómeno que ocorre na capital, como nas cidades de província cá da ilha.
Os Pubs predominam. Multiplicam-se. Como aqui só se conseguem multiplicar as crianças. De resto, a noite irlandesa já é uma criança crescida e vacinada quando no Continente a noite ainda é uma criança recém-parida. No Verão, ou no pouco de Verão que é permitido ver-se por estas bandas, pode-se sair à noite em plena luz do dia.
Discotecas em Dublin - digo discoteas dignas desse nome, monstros de sete pistas e mil e um néons - nem vê-las. Cabe aos Pubs, em que a música é sempre a mesma todo o ano e de há uns bons anos para cá, transformar-se em discotecas. Um pouco como no Oriente, onde (Rússia incluída) os restaurantes viram karaokes e bares nocturnos.
Deve ser esse o motivo por que, desde que me mudei para Dublin, tanto se me dá o tipo de música. Dou prevalência às pessoas. Às vezes, à falta delas. Assim como à falta de música. Em suma, aprendi a lição de Dublin e, como nesta cidade a noite merece um sinal mais, sempre que saio - divirto-me. Empurrado por uma outra pint, isso é ponto assente.
Tão assente como a homogeneidade de toda a Irlanda. Como boa ilha, a Irlanda limita-se a imitar-se a si mesma. Em nenhuma outra cidade como Dublin é injusto dizer-se que é como comparar a noite ao pé do dia.
Compare quem queira. Compare e, se quiser, me contradiga. Eu cá, ciente de que é Sábado à noite, ficarei entre a cama e o sofá. 

sábado, 3 de novembro de 2012

Com a de-vida distância VIII

Passageiros à espera do Tren Patagónico - San Carlos de Bariloche (Patagónia) 
Vitor Vicente, Fevereiro de 2010

Todos os terminais, de autocarros, comboios, barcos ou aviões, são termómetros do tempo. Tirando quem lá trabalha e que apenas espera o fim do turno, um ou outro diletante que mais não espera que aconteça qualquer coisa que o possa desaborrecer sem que isso o apoquente, tirando estes, há sempre alguém à espera de alguém. Seja à espera de alguém que vai chegar, seja a partir para um lugar onde alguém esteja à sua espera.
Elevados à mais alta das esperas, a espera entre estrelas, espera inter-estrelar, os aeroportos são uma espécie de sala de espera suspensa no ar e às avessas. Não há outro lugar onde as emoções estejam tão escancaradas, tão á flor da pele, tão espetacularmente autênticas.
No fundo, o próprio mundo é uma  sala de espera, que se espreguiçou e se tornou um pouco maior que o costume e que o esperado. Viver, enfim, é estar à espera. Mesmo escondidos, à espreita, a olhar de esguelha, nalguma esquina ou expostos à descarada, somos sempre surpreendidos pelo próprio soslaio. Esperamos, logo existimos.
Eu conheci salas de espera de toda a espécie. Desde o dentista de Dublin onde fui a semana passada, até a todas as portas de embarque de todos os aeroportos onde fiz figas para fazer valer o meu bilhete stand by.
Diria que todas as salas de espera deste mundo e do outro são sempre a mesma. A mesma ansiedade, a mesma paciência. A pressa personificada na diferença de cada pessoa.
Mas nada vi que se pareça aos prédios residenciais de porta semi-aberta e candeeiro vermelho no tecto, algures num infame bairro de Atenas. Onde, logo à entrada, vi tipos fazerem fila num banquinho, enquanto aguardavam a sua vez de serem chamados para comprar a  cópula de circunstância no rés-de-chão direito ou esquerdo, consoante fosse o freguês que se despachasse mais cedo.
Filas gregas. Filas indianas. As diferentes maneiras de estar à espera. Como posso comparar os dentistas de Dublin aos de Portugal? Tão despidos de cerimónias, de secretárias, de importancidades - tão irlandeses.  Só os posso comparar aos médicos cá da cidade, que nos medem a febre com uma mão e nos cobram os cinquenta euros da consulta com a outra. 
Com maiores ou menores semelhanças, volto sempre a Portugal, sempre que me volto a sentar numa sala de espera. O tempo das salas de espera é o mesmo tempo das distantes tardes febris que passei na infância, deitado, a observar as intermináveis paredes do meu quarto. O tempo das salas de espera é o tempo dos que adoecem de tédio e no tédio encontram a terapia contra tudo e contra todos. 
No meu caso, o tédio é ainda o tempo em que me é permitido o privilégio de estar de novo perto de  Portugal, com a de-vida distância. 

domingo, 28 de outubro de 2012

Variações sobre Velhas Viagens XII

Porta de Brandenurg, Berlim, Vitor Vicente, Novembro de 2009

Ainda a memória. A morte. A memória em permanente combate contra a morte.
Nem sempre as viagens que temos mais presentes são as mais recentes. Há viagens de que guardamos apenas uma vaga e imprecisa ideia, outras, ainda que feitas há milénios, parecem ter ocorrido ontem. Levando ao extremo, há viagens que nunca parecemos ter feito e viagens que parecem não terem terminado, nem terem como terminar. 
Houve um tempo em que me recusava a tirar fotogafias em viagem. Houve outro tempo em que me recusava a escrever. Houve ainda outro tempo em que não queria registar de maneira nenhuma as realidades que testemunhava, excepto na memória. Há sempre um tempo para tudo, quando nada se tem a perder - além da inxepiável culpa de termos nascido.
Às vezes, dá-me vontade de voltar às cidades onde estive e nada nem ninguém o diria. Seria o regresso real.  Do meu mundo nada lá ficou e de lá nada trouxe de tamanho suficiente para poder dizer que o trouxe comigo.
Às viagens pedem-se episódios. Pitorescos ou plenos de preguiça e de paz, tanto faz. Despojar-se de epísódios é igual a viver sem nunca ter existido. É como fazer do funeral uma cerimónial memorável para todos, menos para o defunto. 
Ficam por mencionar as viagens feitas de memórias intraduzíveis. Tão particulares e pessoais que se tornam impossíveis de partilhar. Estão condenadas a enterrar-se no esquecimento. A serem construídas com o material imune ao eco, com o material oco dos caixões. Ao mutismo gritante dos mortos. 

domingo, 21 de outubro de 2012

Variações sobre Velhas Viagens XI


Belfast Cab, Vitor Vicente, Outubro de 2011

Talvez algumas viagens apenas valham a pena pelas memórias. Talvez todas as viagens. 
São os extras que nos enchem a existência. As excentricidades elegantes, os encontros que o mundo nos marcou na agenda, sem antes nos consultar a disposição para o quotidiano.
No dia antes de viajar para Belfast - no tanto que é possível viajar para Belfast, para quem vem de Dublin - nesse dia de preparativos, encontrei-a. Era o dia em que fazia um ano e meio que deixara Barcelona, em direcção a Dublin, alguns anos após ter partido de Portugal para Barcelona e após de Portugal ter planeado partir para me mudar para Dublin.
Mas deixemos essa encruzilhada. Concentromo-nos no caminho que me levou a este encontro, que é como quem diz na eternidade descida à terra.
Entretanto, já numa festa e em Belfast - no tanto que é possível estar em festa numa cidade feia e agreste como Belfast - deixei que uma certa senhora celta me mexesse na berguilha. Quis congratular o gesto com um beijo. Sem sucesso. A noite de hotel em Belfast que eu não marcara revelou-se um banco do Bus Eireann que liga as Irlandas a altas horas da madrugada.
Excesso de confiança, de soberba. Semanas antes, numa cidade chinesa chamada Guanzghou, outrora conhecida como Cantão, houvera fugaz história com uma garota do Uganda. 
Não houve bela em Belfast. A haver uma bela em Belfast, houve na véspera.
As vésperas são parte da viagem. Tanto quanto o dia que se segue ao dia do regresso. Tanto quanto os encontros que, por estarem escritos nas estrelas, são patrocinados pela eternidade.
Ela já era parte da viagem sem o sabermos. Ela já era parte da vida sem o sabermos.
Talvez algumas viagem apenas valham a pena pelas memórias. Talvez todas as viagens. Talvez o próprio mundo. Talvez a própria vida. Ou mais não se anda a fazer deste mundo do que um mero lugar onde se veio dar uma volta. 

sábado, 20 de outubro de 2012

Diáspora de Dublin XIX


O anoitecer e o amanhecer são a mesma coisa - Reykjavík, Vitor Vicente, Junho de 2011

Tenho trabalhado com tipos de toda a parte do mundo. Desde Nepalenses de metro e meio chamados Dick, passando por Franceses a bocejar vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, até Alemães devotos ao dever como Merkel manda. Poucos Irlandeses, por na Irlanda não haver falta de trabalho mas sim  por não haver falta de gente que não quer trabalhar, e também por a maioria dos escritórios por onde passei serem guetos de expatriados. Alguns Espanhóis, alguns Catalães e mais Catalães muito Espanhóis do que Espanhóis muito Catalães. A tudo isto e, tanto em Espanha (digo, na Catalunya) como na Irlanda, se têm intrometido bastantes Italianos, tão dados aos serviços mínimos como os Espanhóis (não digo,  Catalães) e os Irlandeses e nunca tão serviçais quanto os Portugueses na condição de emigrantes.
Um destes Italianos, certa manhã, acompanhado doutro italiano, entrou no Shuttle Bus que, todas as manhãs do mundo, transporta cargas de ensonados (Franceses, Irlandeses e não só) ao East Point, um dos parques empresariais mais arranjadinhos de Dublin, localizado numa das áreas mais desarranjadas da cidade.
Arranjar, lá tive eu que arranjar a carantonha quando o tal Italiano me foi apresentado como um novo colega, pelo seu compatriota e que não era outro Italiano qualquer, mas um dos Managers da empresa. De imediato, nessa manhã nublada, como nubladas tendem a ser todas as manhãs neste lado do mundo, congratulei-o por ser o seu primeiro dia no escritório. Esforcei-me por parecer animado com a nossa rotina laboral, mais para agradar ao Manager (na altura, eu ainda não tinha contrato efetivo) do que para propriamente com o propósito de animar o recém-chegado. 
Passaram-se meses e, já eu pertencia aos quadros da companhia aérea e podia voar ao preço com que a chuva cai em Dublin, quando também o rapaz acabou o chamado período de prova. Logrou atingir os objectivos, recebeu o cartão da empresa e todos os descontos inerentes a ser staff
Depois, pouco depois, descobriu que estava doente. Emagreceu. O estômago nem o deixava comer. Desapareceu.
Vi-o visitar-nos um par de vezes. Queria voltar à empresa. Queria voltar a voar. 
Não voltámos a trocar mais palavras. Ficou-me a manhã em que chegou, pela primeira vez, à empresa. Em que parecia mais um entre tantos, vindos de um dos pigs para o menos pig dos pigs.
Sejamos parte dos pigs ou tomemos alguns países por pigs, ou nem sequer que saibamos que significa essa sigla, somos todos mais um - mesmo. A morte também é mais uma, mas chega para nós todos.   

sábado, 6 de outubro de 2012

Que horas são em Haaretz? VIII

Putin Pub - Jerusalém, Vitor Vicente, Junho de 2012

É comum verem-se bandeiras irlandesas à porta dos pubs de Dublin.  O patriotismo, por estas bandas, está longe de ser serôdio e nada tem a ver com nacionalismos de naftalina, a tresandar a peido e a termas.
Lado a lado com a bandeira irlandesas, é costume erguerem-se as bandeiras do Leinster ou, se decorrem importantes competições internacionais, de outras nações. Como sempre e como em todo o lado, há as mais habituais e as mais interditas.
Cabe aos intrépidos erguerem as interditas. Por estas bandas - infelizmente, não só por estas bandas - não há bandeira mais interdita do que a de Israel. A façanha cumpriu-a o Foley`s, um pub situado em frente à casa de um dos muitos deputados anti-semitas e à entrada de Dublin 4 que é como cá, à falta de códigos postais, se tende a designar  a zona chic
Entre as quatro paredes do Foley`s, mais propriamente no piso de cima, qual condição de clandestinos, lá nos reunimos. Embora tenha conseguido contar quantos Jack Daniels tomei, não consegui contar quantos gatos pingados lá estavam Talvez trinta. Todos a tentar fazer ouvir a maldita voz de Israel no hostil Èire
Lá fora, ao frio, ouvia-se "Free, Free Palestine". Quem? O comité de camaradas do costume. Quem mais poderia ser senão aquele staff que se desdobra e se desunha para estar em todas as manifs anti-Israel, anti-Yankees e anti-isto & aquilo. Têm até que trabalhar por turnos. E que montar tendas na Dame Street que, de há um tempo para cá, ocuparam como verdadeiro colonatos do caralho. 
Os cães passam, enquanto a caravana, sorrateira e sarcástica, saudável, simplesmente passa. Sem outra reivindicação que a liberdade de expressão e o direito à diferença. O singelo pedido de poderem existir tal como são. 

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Amor de Mediterrâneo III

Las Ramblas - Barcelona, Vitor Vicente, Setembro de 2012

Barcelona é mais do que uma cidade. É uma super-cidade, o supra-sum do conceito de cidade. Barcelona é um bar a céu aberto. Barcelona é o o único pedaço de céu que D-us nos deu para desfrutar como um bar aberto.
Basta aterrar nas Ramblas. (As Ramblas são, aliás, o único sítio onde se aterra e se dá a impressão de se ter  ascendido às alturas). Basta arrastar-se, com vocação de vagabundo, nas Ramblas para se perceber que a realidade das Ramblas é uma e a do mundo é radicalmente outra. Inclusivé, a da cidade circundante, de que dizem (e que  nos custa a crer) se encontra em crise. 
A crise nem sempre nos permite pagar a boémia. Em contrapartida, Barcelona oferece-nos o prazer sem preço da praia. (Ao fundo das Ramblas, desejosos de desaguar no Mediterrâneo, é ainda possível aos pobres respirar a plenos pulmões).
Dito assim, o prazer parece a custo zero. Apenas parece. Esta cidade só se oferece a quem a merece.
Posto isto, deixei para trás tours turísticos para brancóide entreter, e ofereci um rally citadino pelas oito casas onde vivi nos primeiros oito meses na capital da Catalunya. (Feito num redondo oito, claro está). Das quais, duas foram dois hostels, onde vivi durante uma semana e dos quais mudei de um para o outro um par de vezes para poupar três euros que, na época, se traduziram em três baguettes de tortilha.
Época épica. Não havia sombra que deitasse abaixo os meus sonhos, nem assombro que me desassossegasse os desejos. O pragmatismo era para os parvos. Romantizar a realidade era tão matemático como pisar as Ramblas.
As Ramblas que, por muito que por lá rastejasse, nunca me pisaram como me pisou Portugal. 

sábado, 29 de setembro de 2012

Amor de Mediterrâneo II

Piscina de Pedra - Malta, Vitor Vicente, Setembro de 2012

Cabe à condição de ilha um cuidado maior sobre si mesma. Um cuidado maior, quase quotidiano. Tão quotidiano e enraizado na existência do cidadão comum que, aos olhos dos bárbaros, chega a parecer corriqueiro.
Em Malta, cuidado é sinónimo de zelo. Como se, independentemente do que aconteça no resto do mundo, aqui sempre haja lugar ao dia de amanhã.
É esta a autista cronologia dos ilhéus. O tempo, de tão próprio e pessoal, aparenta estar parado.
Porém, os autocarros de Malta avançaram no tempo e não são mais os mesmos. Eram conhecidos por estarem perros e precisarem de óleo que nem decrépitas máquinas de matraquilhos e serem guiados por senhores de etiquetas de maltesas maneiras, senhores esses que, entre sandálias e santinhas, urravavam com os turistas, essa multidão que, não fosse a despesa que faz, seria detestável. 
Mas Malta não tem dedo para o negócio. Nem se lembraram de transformar os autocarros em atração turística. Antes abateram-nos a troco de uns trocos suficientes para comprar toneladas de pastizzis.
Os pastizzis continuam baratos como antes. As pizzas também. Ao fim e a o cabo, tudo continua parado, pois, à semelhança de Valletta, a ilha é imune à passagem do tempo. Que o diga a minha namorada, hoje tida como mais uma estúpida visitante, outrora assente (assente, aqui, não é o mesmo que aceite) como uma residente.
Para os malteses, o importante é permamenente barato. O prazer é sem preço. A praia, o sol e o mar salgado continuam de graça, como graças darão ao Senhor pela chuva que não cai na ilha. Com a diferença de que, ao contrário dos irlandeses, outros ilhéus recém-indepedentes da coroa Inglesa, não há por que se benzer, sempre que se cruzam com uma das muitas igrejas cá do sítio.
Ingleses é vê-lo em Sliema que, sem eles, seria ainda mais sublime. Mas tudo bem. Com ou sem eles, eu estou (no pouco que é possível estar com ilhéus) com os malteses. O mar e o céu continuarão pintados de azul. De um tipo de azul que, dizem, se parece ao azul, com que, lá no alto, pintaram o Paraíso. 

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Amor de Mediterrâneo I

Macacos a brincar com Mediterrâneo ao fundo - Gibraltar, Vitor Vicente, Março de 2012

Nós, os expatriados, os exilados por vontade e por conta própria; nós que, estejamos onde estejamos, nunca estaremos em território habitável para os homens e que erraremos entre as estrelas e a eternidade; nós, melhor do que nada e ninguém, por vivermos num país que não o nosso, sabemos que estamos aqui agora e amanhã podemos ir embora, que assim é a passagem pelo mundo e que a palavra vida mais não é do que as quatro letras miudinhas de um bilhete só de ida.
Nós temos vontades de aves raras. Queremos voltar a ver com olhos de viajante as pátrias onde, anos antes, erguemos tendas e - tal era o espírito de aventura - nos julgámos a salvo de ventos e tempestades. Com o tempo, que é como quem diz com a distância temporal e também física, percebemos que essas pátrias estão lá, que continuam lá, que ainda podem ser o templo de todos os sonhos para os que ainda se podem permitir a ser inocentes e verdes.  
Às vezes, lá no alto, em pleno voo ou entre um poiso e outro, cruzam-se aves. Trocam dois dedos de conversa sobre caminhos e contra-caminhos, sobre o quanto e onde já sentiram tão sozinhos. Depois, regra geral, cada um segue o seu e faz do céu um pouco mais seu. É o caso mais comum.
Outras vezes, dá-se o acontecimento absolsuto. As aves apaixonam-se. Abrigam-se e aninham-se como quem prolonga a infância, perservam o que dela se vinha perdendo, de tão pouco perdoada e até proibida pelo polícia do crescimento.
Um dia, as aves - que já só juntas dão o golpe de asa - resolvem rumar às pátrias a que pediram guarida emprestada. Quanto à pátria de partida - que descobriram ser pátria de comum - deixam para mais tarde. 
Daqui a nada estarão em Malta. Dias depois, sempre a beirar como quem beija o Mediterrâneo, estarão em Barcelona.

domingo, 2 de setembro de 2012

Diáspora de Dublin XIX


Representação do Poeta Yeats a falar ao povo irlandês, Vitor Vicente, Maio de 2011

Diz-se que os Domingos são iguais em toda e qualquer cidade. É verdade. São iguais - democratictamente iguais -  por que deixam cada  cidade afirmar a sua diferença.
Digo mais: aos Domingos não há cá deveres senão o descanso. E o descanso é o único período da vida em que podemos ditar e decidir o que fazer da nossa vida e quotidiano, a nosso belo e principesco prazer.
Tédio? Tédio, o tanas! O tédio permite-nos ser do nosso próprio tamanho. Talvez, ao princípio, possa parecer assustador.  Porque poder ser do nosso próprio tamanho é um privilégio, um acto de poder.
Sem que acarrete uma valente carga de trabalhos, voltemos atrás. Aos Domingos as grandes cidades são uma grande merda. Ou então não são grandes cidades. Ou estão condenadas a não conseguirem mostrar o quão grandes são nos dias seguintes.
O inverso passa-se connoco, meros cidadãos e meros constituintes da cadeia alimentar desse monstro chamado civilização. Nós não somos nós, ou, vá lá, pouco mais somos do que uma sombra de nós próprios, de Segunda a Sexta. Podíamos ser qualquer outro, em qualquer outra cidade. Estaremos sempre à mercê dos crocodilos citadinos, como quaisquer fantasmas de fato e gravata. Excepto, ao Domingo. O dia em que podemos preencher de nós próprios, sem ser mediados pelo mundo, onde quer que estejamos. O Domingo é o único dia em que aquele que somos impôe-se ao lugar onde estamos.
É quando nos sobrepômos à cidade. À sociedade insensível que nos espezinha a existência dia após dia e que, estúpida, obriga até a mais cintilante e solitária estrela a esperar pela noite para, por fim, poder brilhar.
Só para terminar. Este texto foi escrito na Diáspora de Dublin. Mas podia ter sido escrito debaixo de qualquer extensão da Diáspora. Desde que o Domingo fosse Domingo como quer o Calendário Cristão. Ou, pelo menos, estivesse eu num país como estou, um país em que ainda me é possível dizer a palavra Não.  

domingo, 19 de agosto de 2012

Viaj O `yce


Pombos, pães e pessoas - Portobello, Vitor Vicente, Maio de 2012

14 de Agosto de 2006 Chego a Barcelona depois de deixar o Barreiro e de ter pensado partir de Portugal na direção de Dublin Primeira semana de Maio de 2007 Venho a Dublin de viagem e volto a Barcelona onde entretanto vivo 14 de Agosto de 2012 Vivo em Dublin 14 de Agosto de 2008 Mudas-te para Dublin 14 de Agosto de 2012 Deixaste Dublin durante um ano mas para cá voltaste desde 2010 Duas mãos (só as minhas, por enquanto) que se movem no mundo com leveza de luva com leveza de cerveja Dois trens (digo trens, pois digo trens) que me levam a atravessar a Península de lés a lés Mais tarde a caminho de Dublin três tristes trens (a ver aviões) um navio (a ver aviões) um vulcão cinzas  A ver A beautiful day such a beautiful day dont´t let it get away ay ay ay Estamos a viver abroad a board de uma espécie de exterior sem espaço e pleno de espírito que só é habitável pelos expatriados que vivem fora e ainda viajam e só por isso conseguem viajar à pátria vulgo plataforma de partida 14 de Agosto de 2006 De bar em bar (caminhos de ferro) até Barcelona De Dublin a Jameson depois o Tulamore Jew  Eu e tu antes na mesma universidade desacadémica catedraquética mesmas gentes gentias mesma cidade sem cor Depois mesma espécie de escroto armado em escritório nojo amor nojo hoje não fosses tu amor hoje nada mais me sobrava do que  nojo Mas há mais há o mesmo mar Mediterrâneo Há Há`aretz no horizonte Não sei viver senão fora senão de fora senão por fora Agora tenho mais uma desculpa (contigo, duas) para ter ido embora Há dias tristes em Dublin há lamechas em todo o lado É verão em todo o lado em Agosto menos em Dublin 14 de Agosto de 2012 mas eu gosto De ti da excelência sem exame que preside ao exílio de ti Aos dois eu digo sim eu digo sim

sábado, 11 de agosto de 2012

Diáspora de Dublin XVII


Entrada da minha primeira casa - Dublin, Vitor Vicente, Março de 2011

Já devo ter escrito, algures, que viajar é um ato voyeurista. Quando viajantes, queremos ver a olho nu o que vimos do outro lado do ecrã da televisão ou do computador ou, no caso dos letrados, alguma coisa que lemos nalgum livro.
A vida do dia-a-dia, por mais comezinho que seja o quotidiano, também tem as suas micro-viagens. Nem que seja esse trânsito de ida e volta que cumprimos a caminho do trabalho. Em que do mundo, de tanto sempre parecer tratar-se da mesmíssima e parada paisagem, só trazemos imagens monótonas.
Duranta a semana, é certo, tendemos a andar submersos. Só à Sexta, sobretudo da parte da tarde, subimos à superfície e vemos a vida que há dentro dos pedaços de cidade por onde apenas passámos.
Tente-se ir a pé por paragens antes navegadas ao volante. Ver-se-á tudo grande, gigante, ou, pelo menos, muito maior do que o tamanho aparentado há dois dias atrás. Ver-se-á o nosso reflexo na realidade, o entusiasmo a olhar-se, vaidoso, ao espelho.
Exercício este, garanto-vos, é de levar às estrelas. Não tem efeitos secundários para quem sofra de vertigens com as alturas desta vida e da outra. Nem é preciso correr meio mundo. Basta abrir a porta de casa. 

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Com a de-vida distância VII

Entrada do Irish Jewish Museum - Dublin, Vitor Vicente, Maio de 2012

Muita gente sabe que tenho pouco interesse - para não dizer nenhum - por notícias. Do mundo, de Portugal em particular, nada.
Ou de quase nada. Nem mesmo nos raros momentos de nostalgia sou levado a ler notícias da velha nação. Apenas o futebol tem o condão de me religar fisicamente ao fastidioso mundo dos factos e, por breves instantes e meros momentos, abrir mão da fantasia e de me sentir vizinho do infinito.
Durante um intervalo do horário de trabalho – ou seja, de dar um salto ao outro mundo, ficar como que suspenso – lembrei-me de consultar o zerozero.pt, vulgo cyber-enciclopédia de futebol. Detive-me numa das notícias de destaque: sorteio da primeira eliminatória da Taça de Portugal.
Procurei pelas equipas do Barreiro, minha cidade berço, e, por isso, a minha cidade de sempre - e que, assim dita, mais parece um bairro.
Antes ainda de encontrar o Barreirense e o Fabril, dei de caras com uma equipa chamada, nem mais nem menos, do que: Barreiro. Aos ditos, os deuses ditaram jogar em casa. Quer isto dizer, em Angra do Heroísmo, mais propriamente no Porto Judeu.
Barreiro? Porto Judeu? Isto merecia investigação. Próxima paragem: Wikipedia.
De acordo com a Wikipedia, o Porto Judeu foi assim chamado por, na altura do batismo, tudo o que de mau havia era chamado, nem mais nem menos, de “Judeu.”
Assim termina mais uma lenda anti-semita. Lenda ou com fundo de verdade, dou graças ao Senhor por assistir a tudo isto desde Dublin, com a de-vida distância.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Diáspora de Dublin XVI


Port Vell - Barcelona, Vitor Vicente, Agosto de 2011

Chego a casa após cumprir um caminho de chuva, ligo o computador como quem liga a ignição de um carro, e vejo vídeos da costa da Catalunya. Com um olho no écran e o outro na janela, de sobrolho meio que  desconfiado, meio que nostálgico, pergunto-me: que me faltou para ser feliz durante os quase quatro anos que vivi em Barcelona?
Sei bem que o sol, ou o sol de sobeja, com fartura até ao enjoo, não me chega. Sei - sim, tenho a certeza - de um certo sorriso solar que me alumia mais a alma do que uma sucessão de tardes ensolaradas. Ainda assim, a dez minutos a pé ou mesmo a a alguns minutos mais de metro do Mediterrâneo, continuo a interrogar-me como foi que não encontrei a fórmula (fórmula fácil, à mão beijada pelo mar!) para a felicidade nessas terras?
Talvez seja só a ansiedade por voltar a essas terras que, noutras temporadas, me pareciam a Terra Prometida. É certo que o regresso é só em Setembro. Que haverá mar e mar, e Malta também. 
Também sei que não sofro de ânsia de férias. Por mais que trabalhe - e olhem que trabalho muito, demasiado para o meu gosto de dândi - posso permitir-me a dizer que jamais faço férias e que apenas  viajo. 
Entre viagens e regressos à base, cargas de trabalho e regressos a casa, chego então à conclusão que a felicidade não é facto ou objecto palpável nesta ou naquela terra. A felicidade é uma faísca. De quem só nós podemos ser o fôlego, sempre que animados pelo Sopro.
Falte-nos o fôlego e - é fatal - pouco mais somos do que um fantasma .

sábado, 28 de julho de 2012

Diáspora de Dublin XV

Uma charrete no meu bairro - Dublin, Vitor Vicente, Maio de 2012

Maneiras conformados com a morte, agarramo-nos ao poder da memória.  Por outras palavras, esforçamo-nos - ainda que padecidos de preguicite crónica, esforçamo-nos - por existir contra o esquecimento. E tudo o que resvale no esquecimento e não erija nenhuma torre etérea, tudo isso, esmorece-nos o espírito e embala-nos até ao bocejo.
É o caso das viagens do dia-a-dia, a caminho do ou vindos - chamemos-lhe assim, tal é a pouca poesia  - do  trabalho. Se pensarmos bem, ou se ainda nos for permitido pensar bem, perceberemos que a presença do trabalho é contra-natura no quotidiano daquele que viaja.
Dessas viagens não trazemos mais que recordações de realidades vagas, infinitos imprecisos e intermitentes, em suma impressões embaçadas de quem vislumbra o que não lhe é dado a ver e, ainda assim, vê sem pouco ou nada fazer por issso. Dessas viagens trazemos o desconsolo de não termos ido mais além, quando às viagens devemos o termo ido longe, assim como as lembranças que, a posteriori, se revelarão as mais longas. Mais longas e mais verdadeiras, tal era o vigor, a entrega, a estrela que brilhava dentro de nós.
Não consigo descortinar se essas viagens se fazem demasiado depressa ou demasiado devagar para que possam reter a requintada vigília do viajante. Digo sim, e com a segurança de quem tem a certeza, que são viagens que fazemos dormidos, com a alma na almofada e o corpo coberto por uma couraça.
Digo ainda que essas viagens podem ser feitas em Dublin ou noutra cidade - de preferência, capital - qualquer. Da igual, rematariam, como quem cospe, os espanhóis. É indiferente, concluíram, de ombros caídos, os portugueses. A mim tanto se me dá, pois de tão cansado nada tenho a dar a ninguém.

domingo, 22 de julho de 2012

Variações sobre Velhas Viagens X


Belfast Ball, Vitor Vicente, Outubro de 2011

Há muito tempo que não escrevo sobre velhas viagens.
Na verdade, todas as viagens que fiz, por mais vivas que as memórias se mantenham, parecem-me velhas. Digo, todas as viagens que fiz antes de ti. E todas as viagens que fiz antes de ti são quase todas as viagens que fiz.
A fotografia – já me esquecia de escrever – tirei-a em Belfast. Mas podia ter tirado noutra cidade qualquer. A cidade nem vai aqui para o caso. Podia ter ilustrado com uma fotografia doutra cidade, ou das cidades em que viajei nos tempos em que não tirava fotografias.
Outros tempos. Mesmo as realidades visitadas recentemente, parecem-me realidades remotas, pertença de uma vida prévia, de um tempo que ficou para trás.
Agora todas as viagens são velhas. Amareleceram por serem anteriores a ti. Todas as viagens, assim como todos os trânsitos por todo o tipo de viadutos, são uma só viagem. Tanto mais velhas, mais verdadeiras.
Há o antes e o depois de ti. O antes abarca todas essas viagens que, juntas, são o trânsito mais que absurdo. O depois é desde o nosso primeiro dia a dois.
Adiante. Adiante que as viagens se fazem velhas e amarelas. A vida também. O amor é o único antídoto à prova da velhice.

domingo, 8 de julho de 2012

Lovely Latvia (Báltico Balnear)


Estância Balnear de Majori - Letónia, Vitor Vicente, Julho de 2012 

Há viagens que, em nenhum momento, nos dizem o que é dado a ver no destino.
É o caso do comboio que vai da estação central de Riga para a estância balnear de Majori. Espantem-se, sim, espantem-se: existe uma estância balnear no Báltico, lá para os lados da Letónia. Nenhuma paragem, nem mesmo Majori, onde se desce e se diz ficar a poucos passos/metros do mar; nenhuma paisagem entre uma e outra paragem parece ser possível levantar a possibilidade de haver uma praia por ali, sem que passemos por parvos.
Nem os passageiros levantam suspeitas, nada. As pessoas apenas têm uma aparência mais relaxada.
Relaxados não estaríamos eu e a minha namorada se, antes da aventura de dois dias em Riga e arredores, não tivéssemos consultado alguns colegas e o Google, o oráculo dos viajantes pós-modernos. 
Como disse, assim que se sai em Majori, não cheira a mar, nem a peixe, nem a lota; nem sequer se adivinha a areia. Há apenas uma animada avenida cheia de restaurantes e bares que vai dar a outra avenida também animada por restaurantes e bares – cheia de gente cheia de si própria, por se encontrar de férias ou simplesmente ser Domingo e, por isso, ter o direito de dispor de quem trabalha por turnos às avessas do calendário da civilização.
Ao menos, estes Eslavos estão mais descontraídos do que o cultivado aquando nas suas cidades. Eslavos assim só vi em Tel Aviv, amenizados pelo Mediterrânico.
Mas esta vila à beira do Báltico plantada parece-se a Paraty. Com casas tão pequenas que não podem ser chamadas de casas e tão grandes que não podem ser chamadas de cabanas. Quem diria que encontraria aqui um eco de Paraty ? Longe tão longe do litoral paulista...
Sarcasmo esse só superado por, após alguns minutos de mistério, dar-se de caras com a estância balnear do Báltico. Onde a areia separa o mar de árvores altas, de tantas árvores altas que já fazem uma floresta. Onde há um Havana Club e Drum N `Bass no ar.
A isto eu chamo ir pela ironia dentro. Ironia imensa. De se banhar no Báltico e se sentar debaixo de um sol que se põe pouco mais de um par de horas por dia de Verão.  

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Lovely Latvia (A realidade de Riga)

Rio Daugava - Riga, Vitor Vicente, Junho de 2012

Do pouco que passeei por Portugal não me foi dada a conhecer nenhuma cidade que tenha uma ponte para si própria. À semelhança do nosso país, também as cidades que o constituem cultivam as micro-divisas, tidas como freguesias, e põem a populaça de um lado e a nata na outra margem - à parte.
A Europa, por definição integralista, como se querem os pretensos impérios, é mais dada a conceber cidades divididas em duas, com um rio ao meio para amenizar a falta de mar. Rio que se pede ser encimado por uma ponte, por onde possam passar carros e comboios, charretes e cavalos e, por que não?, também pessoas.
Copenhaga, a cidade mais europeia da Escandinávia (ou devo dizer a cidade mais escandinava da Europa?) tem até uma ponte para uma outra cidade de um outro país: Malmo, na vizinha Suécia. Não fosse Copenhaga a ponte mais que perfeita entre a Europa e a Escandinávia.
Chegado a este ponto, isto é de ponte em ponte, damos de caras com Riga. Cidade entrecortada pelo rio Daugava e que muito lhe contribui para o estatuto de cidade da Europa continental. O rio e os edifícios de recorte holandês e germânico, todos eles erguidos muitos anos antes – ou seja, séculos – do domínio sueco e das sovas soviéticas.
Na verdade, Riga revela-se a ponte imperfeita entre a Escandinávia e a Rússia, ou o que de russo resta na Rússia e arredores. Imperfeita por, para pesar dos pecados dos letões, pender para o lado leste.
De resto, a realidade de Riga, não obstante uma certa nostalgia, parece debruçar-se na direcção do futuro -  ainda que atabalhoadamente.
Cidades assim, cidades-ponte, jamais permitirão sentir-se parte dela. Incrustam-nos o estatuto de estrangeiro à partida e à chegada. Nem aos nativos parece ser possível fruir da sensação de pertença. Palavras para quê? São cidades-ponte, senhores, são cidades-ponte. 

domingo, 24 de junho de 2012

Vinte e Quatro Horas em Viena

Lusco-Fusco em Viena, Vitor Vicente, Junho de 2012

Ainda no avião da Austrian Airlines, antes de aterrar, já nos vendem a valsa. É válido. O turismo mais não é do que vender a alma lavada.
Valha-nos D-us, ó Veneza. Que, de tanta corja aos pares e a galope nas gôndolas, deixaste degenerar a beleza em vileza.
Mas o presente caso  é Viena.
Cujo centro da cidade, reconheça-se em abono da verdade, é um palácio a céu aberto. Não só o centro, mas também boa parte da cidade, tem o charme de quem parece ser à prova do tempo. Como se o tempo aqui passasse, parasse, e petrifica-se - face a tanta beleza.
Beleza que não é para brancóide ver. A capital da Áustria tem a beleza da Europa Central. Daquela Europa invariavelmente igual, de identidade incolor, baça. Uma identidade quase inexistente. Tão inexistente que inimitável. 
Do meu quarto de hotel, consigo ouvir um comboio que - estou capaz de jurar - deve ser o mesmo que eu ouvia do quarto de hotel onde dormi na minha primeira vez em Praga. Talvez seja outro, mas a vontade é a mesma: partir para uma viagem numa paisagem invariavelmente igual, uma paisagem que não se pode escrever no plural, por ser e não ser sempre a mesma.
Ah partir, palavra que não se descodifica no dicionáro, mas através das paisagens que apenas desbrava aquele que parte.
Por falar em partidas, amanhã há outro avião. Para a Irlanda, a ilha mais homogénea à face da Terra. Onde é ainda permitido esquecer-se que se está na Europa enquanto na Europa se vive. De onde se pode voar para o Velho Continente e do Velho Continente voltar com a impressão que se fez um voo inter-continental.
Valham-nos as terras que sejam trampolins para outros pontos da Terra. 

domingo, 17 de junho de 2012

Viagística XIV

Moses Bar - Tel Aviv, Vitor Vicente, Junho de 2012

O sarcasmo de beber uma cerveja chamada GoldStar num bar chamado Moses.
Só superável pela hipótese, de, algum dia, poder beber uma cerveja chamada Moses num bar chamado Goldstar.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

O Som e o Sagrado (Israel)


Praia de Tel Aviv, Vitor Vicente, Junho de 2012

Quanto mais curta uma viagem, mais dificil de dizer em poucas palavras. Os resumos não foram feitos para reproduzir realidades das quais, face à urgência e à falta de tempo, se requerem relatos rápidos. Realidades breves, fugazes como a própria vida. 
Existem momentos que justificam toda a experiência da existência e do mundo. Por exemplo, momentos musicais.
Desta viagem a Israel guardo, sobretudo, sons.
Ao levantar o pano - ou, já que é um palco sonoro, no princípio da pauta - surge um saxofone. Ouvido, certa, noite, na esplanada de um bar de Jazz de Jerusalém. Sempre que o saxofone se sobrepunha ao contrabaixo, sacudiam-me duas ideias: a de que me encontrava além de Jerusalém e a de que, onde quer que esteja, em Jerusalém estarei. Simplesmente: estava suspenso no som do saxofone.
Do saxofone passamos ao silêncio. Sim, esse senhor, o silêncio, que é capaz de reduzir multidões ao mutismo. O silêncio, por sinal cerimonial, que ecoou, certa tarde, numa praia de Tel Aviv. Explico: estava aqui o escriba debruçado - precisamente - no papel quando, terminado o texto, pensou ter transformado a praia num deserto. A areia - sabe-se há séculos, senão mesmo há milénios - dos místicos é alada, anfíbia e sábia. E mais, consegue pôr toda a gente - nem que seja por gloriosos minutos -  calada. Para que assim, assente na areia, se efective o real exilio da escrita. Também tida por termo da escravatura, escapada do Egipto - sem que não nos engasguemos e numa só palavra: êxodo.
Este silêncio voltou a ecoar, no dia seguinte, já na Europa -  no coração do continente. No comboio que vai do aeroporto de Viena até ao centro da cidade, ouvi o silêncio dar as ordens que nem um maestro de orquestra. Noutro comboio, o citadino, ainda em Viena, era um regalo para os tímpanos ouvir os travões chiarem sempre que se chegava à proxima paragem. Entre uma paragem e a próxima, sempre o mesmo sonoro e silencioso aviso. Quem não desse pelas paragens, sentia que podia continuar neste comboio - continuamente, para sempre. 
Para sempre - pois nunca de lá saímos - voltaremos a Israel. Com ou sem "kipah", era sempre saudado com um "Shalom". Saudação que, por não conseguir dar seguimento em hebraico e depois de uma sequência de embaraçosos silêncios, deixei de repetir. À despedida, todavia, lá soltava um tímido "Todá".
Despedida? Todas as viagens a Israel são só de ida. Despedir-se é só dar ínicio ao próximo regresso.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Diáspora de Dublin XIV

Canal do Portobello, Vitor Vicente, Maio de 2012

Portobello. Porto donde nunca parti e onde agora regresso. Canal, quase-cais, cidade chamada Dublin que ainda não conheço, nem me conhece, nem me chama pelo nome. Cidade que, tantas vezes, tem sido o meu trampolim para ir em frente, para Frankfurt, e de Frankfurt chegar a outro lugar.
Portobello. Ponto de partida para, passados dois anos da chegada à cidade onde já devia ter chegado há quase seis, reconstruir o dia-a-dia dublinense a partir de outra formatação que não a da realidade do bairro de Rathmines. 
Como se não houvessem outro olhos que não os nossos. Como se nos fosse permitido outrar outra coisa que não os próprios olhos. Como se as cidades pudessem ser de papel de cenário para o cidadão comum e não só património exclusivo dos sonhadores e dos sonâmbulos fora de horas.
Daqui a uma semana, sigo viagem para Israel. Só de ida, pois viagens para Israel só têm ida, não incluem saída. 
Sei que não actualizo aqui a Diápora há mais de um mês. Tenho andado ocupado a adaptar-me à ideia de regressar a uma realidade onde nunca residi.
Não me vou perder em pedidos de desculpas. Vou aproveitar o sol. A luz. O teu sorriso solar. O nosso céu. Essa mesma nuvem-navio que sobe e desce um canal que é só meu e teu. 

domingo, 1 de abril de 2012

Viagística XIII


Avião a sobrevoar a Avenida da Praia - Barreiro, Vitor Vicente, Março de 2012

Quando fosse grande, queria ser estrangeiro - estrangeiro de qualquer espécie.
Agora, quase com trinta anos, agora queria voltar a ser Português - mas já não consigo.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Fim de Semana ao Sul III


Europa Point - Gibraltar, Vitor Vicente, Março de 2012
Miguel levanta uma das mãos do volante:
- Vês aquela rocha? Enorme?
- Espera. Tenho que pôr os óculos – apresso-me a responder, já habituado a precisar de algum tipo de auxílio para poder ver o que todos podem ver.
- Não precisas, homem. É enorme – reforça o meu amigo.
Já de óculos postos, dou de caras com o rochedo. Dá para entender que está longe , que é pela imponência que dá a ilusão que está perto.
- É já em Gibraltar?
É já em Gibraltar. É já um terço do tamanho do Gibraltar. É o cartão de visita da cidade. Dá-nos  as boas-vindas, fica-nos na retina.  Grava-se no cérebro com o poder de um verdadeiro monumento de pedra.
Dizem que os Ingleses construíram toda uma cidade lá dentro, a fim de se protegerem de possíveis ataques bélicos. Esta rocha é como que uma trincheira de guerra. Dela diz-se – como pouco se sabe, muito se diz, tal é o mistério – que veio de África. Uma rocha anfíbia, portanto. À prova de bala, à prova de água. Para ficar na memória. À prova da morte, portanto.
É o abono de família dos Gibraltinos. Para Inglês ver e turista visitar. Nela vivem macacos. Muitos macacos.
Mais tarde, à boleia de outro Miguel, este marido da minha amiga Elisabete, também de mãos momentaneamente fora do volante, explicam-me:
- Os macacos são sagrados. Se algum se deita na estrada, pára o trânsito. Mas é que pára mesmo. Alto aí que há um macaco na estrada. Ai de quem atropelá-lo. Atropelar um macaco, aqui em Gibraltar, é apanhar uma alta multa.
Os macacos são divertidos, mas demasiado afins aos humanos para o meu misantropo gosto. Gosto mais das gaivotas. Do coro de gaivotas que, como uma orquestra, anunciam a aurora, entoam cânticos portuários num espaço entre o mar e o céu que só elas conhecem. Elas e aqueles que, como eu, avistam África e sentem um apelo para partir. Não para África. Mas pelo desconhecido, para um lugar lá longe, uma terra sem nome. Onde o anonimato é ainda alcançável.
Não posso ver um navio, um cruzeiro, um qualquer barco colossal, sem que me dê vontade de esconder num biombo, num qualquer contentor. E embarcar, escondido, entre a carga.
Resta-me ficar em terra, imaginar que tipo de carga se transporta. Se praticam contrabando, em que cais aportam, como se embebedam, e um infinito marítimo etc.
Voltando à terra. Nesse dia, enquanto terminava a festa de Purim, o Miguel levou-me ao bairro judeu de Gibraltar. Nunca vi tanta presença judaica por metro quadrado. Ao final da tarde, já com Elisabete e os dois Miguéis (tal pai, tal filho), bebemos café numa rua verde, em homenagem aos primeiros irlandeses que chegaram à cidade.
Já a cidade se cobria com um manto negro e pontilhado por estrelas quando, em consonância com a identidade cosmopolita de Gibraltar, jantamos num restaurante gerido por um indiano, cuja cozinha era sobretudo argentina e os garçons ibéricos e ingleses.
Gibraltar dá-nos a ideia de que estamos fora do mundo e que todos os povos do mundo, alguma vez na vida, por um breve momento, vieram cá desaguar. Que o mundo é mundo civilizado desde o dia que é como um cais. Que só cresce quando acolhe e invade, se auto-aceita. Que só assim se multiplica.
Belíssima lição. 

segunda-feira, 19 de março de 2012

Fim de Semana ao Sul II

Baía de Gibraltar, Vitor Vicente, Março de 2012

Avistar África pela primeira vez. Apetecer: partir.
Só para seguir a rota de Rimbaud. 

quarta-feira, 14 de março de 2012

Fim de Semana ao Sul I

Panorâmica de Málaga, Vitor Vicente, Março de 2012
Não comungo do anti-castelhanismo dos Portugueses (em particular do praticado na Capital), nem do fascínio basbaque e sem factos dos Europeus por todo o produto o que provém de Espanha.
Nem há por que se espantar. Poucas vezes participo de sentimentos partilhados por um sem-número de pessoas. Parecem-me sempre sentimentos sujos. Mascarrados como jornais repletos de mentiras, desde a manchete até à meteorologia.
Chegar a Espanha é, contudo, para mim como chegar a casa. Não importa qual a cidade, pois ainda que nunca tenha estado na cidade em causa, sinto-me sempre em casa. Como foi o caso, em Málaga.
É que esse sentimento, de chegada a casa, começou logo ao aterrar. As “vozes de aviso” (para não deixar a bagagem ao abandono, para fumar nas zonas pré-designadas para o efeito, para embarcar na porta X) são exactamente as mesmas desse Aeroporto (de Barcelona) que será o meu Aeroporto de sempre; esteja eu a embarcar ou aterrar de e para  qualquer parte do mundo.
Já na cidade, passo aos pequenos, pessoais e imperceptíveis prazeres que adquiri aquando do tempo que vivi na Catalunya. Coisas tão bobas como comer um certo bolo (pode ser uma simples Ensaimada, só para citar um exemplo), ou almoçar uma Baguete de Tortilha. Ou então o delicioso Durum da Turquia onde não tenciono ir senão através da Tienda da esquina.
De resto, a realidade propriamente dita pouco ou nada providencia. Sou só eu que adiciono. Sou só eu que existo – e não a Espanha - como num sonho.
 

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