terça-feira, 23 de abril de 2013

Variações sobre Velhas Viagens XVII

Baía de Vancouver, Vitor Vicente, Dezembro de 2012

Volto a Vancouver, donde sonhei nunca mais sair, desde o dia em que a visitei e, não fosse a distância e a idade avançada do meu país (digo, trocando o acento aos is, dos meus pais), lá quis fazer vida, construir um qualquer atabalhoado quotidiano que, enfim, me permitisse ver as estrelas encimar as montanhas através da janela de um escritório qualquer.
Volto a Vancouver via um livro de Malcolm Lowry. Volta-se sempre a vagamundear, volta-se sempre a algum lugar quando se lê Lowry. Mais não seja ao nenhum lugar que ocupa o inglório saber daquele que tem um alcance cerebral que vai mais além de abrir uma lata de conservas ou assar umas sardinhas. Esse nenhum lugar ambulante e amaldiçoado. Algo entre o embriagado e a estrela cadente. Algo assim, semelhante a um nenhum lugar sem espaço e de espírito transpirado.
Parece que o conto em questão, "The Bravest Boat", tem como cenário a baía de Vancouver. Onde Lowry viveu durante uns tempos. Tempos tão atordoados quanto os que passou na Sicília. Quase tão atormentados quanto os que decorreram no México, de Tequila e ceroulas na mão. 
Ao fim e ao cabo - que no caso não é mas bem podia ser o cabo das Tormentas - tanto faz. Este barco pertence à mesma frota de "O Barco Bêbedo", do timoneiro Arthur Rimbaud. Ambos podiam navegar nestas águas, como nas águas do Alaska, ou até Cote d`Azur.
Mudam-se as águas, arrancam-se as páginas do calendário. Mantém-se o desespero diário. A água, quando alguém se quer afogar, é mais da mesma em qualquer parte do mundo. Serve aquele que aspira se asfixiar, serve para quem quer simplesmente estar submerso. Água para naufragarmos em menos que nada. Para subirmos à superfície sob a forma de carcaça carcomida. Para voltarmos a Vancouver sem termos que atravessar o Atlântico. 

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Que Horas são em Haaretz? XI

Recordações de Haaretz - Jerusalém, Vitor Vicente, Junho de 2012

Não tenho televisão. Ou antes, ter, até tenho. Mas está desactivada. Ou talvez deva dizer desligada. Ter alguma coisa em casa sem fazer-lhe caso é o mais indigno modo de desprezo.
Tenho computador. O que, hoje em dia, é como ter televisão, rádio, leitor de dvd e biblioteca, incluíndo a senior seção dos jornais. 
Tenho conta no Facebook. O que, hoje em dia, em que toda a gente se pode dar ao direito de impôr aos amigos o dever da partilha, é como ter a casa cheia com os computadores dos outros. Quem diz computadores, diz também esses aparelhos irritantes que são as televisões. 
Tudo isto começa a ser muita coisa para a minha casa. Para a minha cabeça. Faz muito tempo que eu queria fazer frente às adições do Facebook e afastar-me desse desfile de partilhas durante uns dias. 
Tenho conseguido encontrar um dia ou outro em que me alheio dos audiovisuais. Um dia sabático que, nem sempre, assumo, coicinde com o Shabbat. É que sabático, para quem não saiba, é o período decretado por D-us para que o seu povo se dedicasse ao descanso. 
Mas descanso não se pode ter quando outrém - ainda por cima, outrém que se auto-proclama como Anónimos - ameaça atacar toda e qualquer pessoa afim a Israel ou ao Judaísmo. Assim, por motivos de força maior, pelo poder dos ditos anónimos, enfim, dos outros, fui forçado a estar fora do Facebook que é do mundo inteiro e também é meu - e que só deixa de ser meu quando eu quiser.
Que eu declare (e reclame) o direito ao descanso, não é novidade nenhuma. Que eu não o tenha feito com frequência devido a preguiça, também não é nada de novo. O que tem que ficar claro é que o descanso tem que ser decretado em nome próprio. Nunca por anónimos. Jamais por anti-semitas. No fundo, dois nomes para o mesmo mal: a intolerância, a obstinada inaceitação do outro enquanto outro. Pior, a incapacidade de ter vida  própria e o instinto de obter prazer em perturbar a paz de quem se pode permitir, neste mundo de partilhas e mentiras, a alguma paz e de se querer separar em troca de um certo sossego. 

domingo, 7 de abril de 2013

Barcelona: Segundo Berço


Plaza Reial - Barcelona, Vitor Vicente, Setembro de 2013

Vemos as cidades com outros olhos depois de as ter lido nos livros. Também as lemos com outros olhos depois de as termos visitado em viagem. Nós, que conseguimos confrontar os nossos olhos originais com os olhos que a vida nos colocou à frente da cara, nós outramo-nos e assim metamorfoseamos o mundo, fazemos do mundo muitos e múltiplos mundos.
Mais curioso ainda é ler livros passados em cidades onde vivemos e não nascemos. Ainda mais curioso é ler livros passados nessas cidades que foram escritos por pessoas que, à nossa imagem e semelhança, também não nasceram mas viveram lá. 
É o caso de todo e qualquer livro de Roberto Bolaño, quando a acção se passa em Barcelona. Se que o cenário é a Catalunya, então  é sinónimo do meu interesse pelo livro do chileno. Ainda acresce que Bolaño vagabundeou muito mundo até assentar arraiais em Blanes, na Costa Brava. E isso sente-se imenso no desenraizamento de suas personagens. Todas elas tendem a ser uma espécie de toda-a-terra, que podiam estar aqui onde não estão, como ali onde estarão até D-us sabe quando. E que, ao fim de contas, estejam nesta ou naquela parte do mundo, estarão sempre, meio aluadas, no mundo delas. Porque o mundo continua a ser o mesmo mundo por mais que nos movemos. Só às cidades é que foi dado o dom de se renovar sem sair do mesmo sítio. 
Estou ciente de que a minha Catalunya caducou - até porque nunca coube nos limites dos mapas, nem constou dos atlas oficiais. A Barcelona dos meus vinte e poucos loucos anos, esse palco onde tudo era improvável e tudo era possível, tudo isso terminou. Alguns amigos, tal como eu, mudaram de ares. Outros casaram ou ensimesmeram-se atrás das telas. A minha inocência deu lugar a algum conhecimento de causa que me tornou cauto em circunstâncias que, noutros tempos, me punha a menos de um pé do precípicio.
Não há lugar a regressos porque a realidade que vivi já não se encontra no mesmo lugar. Essa realidade erradicou-se e entricheirou-se na galeria das memórias. Restam-me os romances de Bolaño, ou de Enrique Vila-Matas que, ainda que catalão, por ter viajado bastante, consegue falar da sua cidade com a experiência de um estranho, senão mesmo de um estrangeiro.
"A Pista de Gelo", assim se chama a novela de Bolaño que tenho na mesa da cabeceira, leva-me a voltar a derrapar nas ruas de Barcelona. Mas já não a derrapar, aos tombos e com fome, enquanto me nutria através dos olhos com o vai e vem da Rambla. 
Cabe aos livros recuperar o conforto a que só se chega (ou que só aconchega) quando uma pessoa se sente em casa. Eu, exilado, sempre disse que a minha casa teria de ser feita de paredes de papel, que todos os outros tipos de parede me dariam a claustrofobia de uma cela. Que me fariam pensar num novo plano de fuga. 

sábado, 6 de abril de 2013

Diáspora de Dublin XXIII

Portobello Harbour - Dublin, Vitor Vicente, Maio de 2012

Parece que, por fim, a Primavera chegou. A Portugal, ao velho Continente, e aqui às Ilhas - no pouco que é permitido de Primavera e de espécie de Estio por estas cinzas bandas.
Durante muito tempo, detestei a Primavera. Sobretudo, quando andava na escola, por toda a adolescência fora. É aquele período em que todo o parvo se esfola para obter uma boa nota. E com essa boa nota convencer o stôr a não dar-lhe uma nega que o pudesse comprometer, vulgo chumbar. (Hoje em dia, volvidos todos estes anos, chumbar passou a ser daqueles verbos que me lembram velhos ventos, que, seja em relação à escola, seja em relação a uma ida ao dentista, por  ter caído tão em desuso nos meus dentes, acabei por associar a algo datado e  atribuír requintes de uma qualquer relíquia ridícula. Mas essa, enfim, é outra história). 
Desde que estou em Dublin, e já lá vão quase três anos, que a Primavera passou a ser minha estação preferida. É quando chove menos por cá e os dias são longos, intermináveis que nem o Infinito. Dias lôngevos, como idosos teimosos que, de bengala em punho, sobrevivem a tempestades e enfermidades. Dias luminosos, dias compridos. Dias descomprimidos. Quentes é que nem tanto. São até bastantes os dias que se vestem de um azul que não consigo catalogar de azul escuro ou azul claro. São antes de um azul da côr do frio. 
Como não quero deixar esquecidas as outras estações, passo a um pequeno apontamento que não se prolongorará mais que um parágrafo. O Verão é húmido, tão húmido que nos pode humilhar com uma copiosa chuva a qualquer altura do dia. Mas depressa o dia se recompôe com sol de pouco dura. O Verão Irlandês são as quatro estações do ano a acontecerem em menos de vinte e quatro horas. Já o Inverno é de tez escura, tipo um túnel onde nem a neve Europeia nos acende o nosso lado lúdico mais súbito, nem nos deita a todos debaixo do mesmo impúdico manto branco. O Outono, outrora o meu período preferido do ano,  outrora  a época dos crepúsculos elegantes, degenerou num velho agoirento que, em pleno Agosto, nos anuncia que nos estamos a encaminhar para a escuridão extrema - e que, por nunca termos deixado de  estar às escuras, nem demos por isso. 
No fundo, a nossa preferência é volátil e pode variar consoante assentemos a nossa casa no mundo dos outros. Contudo, os nossos alicerces ambulantes sobrepôem-se a todos os caprichos e actualizações espontâneas do atlas. Sobrepôe-se, sim, só que não parece. Sobrepôe-se, sim, só que nem sempre. Subsistem as vezes que simplesmente sucumbe. 

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Viagem à minha Terra

Varandas do Hotel Eva - Faro, Vitor Vicente, Março de 2013

Chego tarde a esta crónica, como tarde cheguei a Portugal. Digo, um dia depois do previsto, após deitar-me tarde e tarde erguer-me. Demasiado tarde para chegar a tempo de levantar voo na direção de Lisboa.
Em vez de Lisboa, fui para Faro. A bordo, ninguém diria que o voo era para Faro. Quando muito, poder-se-ia levantar a hipótese Faro. Como se poderia aventar as hipóteses Málaga ou Malta. Ou mesmo uma qualquer dessas Canárias quentes para brancóide dar a ver-se em todo o seu provinciano e estúpido esplendor.
Bem vista a fauna de passageiros, os voos das terras dos brancóides para os paraísos meridionais pertencem àquele tipo de voos em que é mais fácil adivinhar a origem do que o destino dos ditos.
Dito isto, devo também frisar que foi fácil perceber que não havia mais ninguém a bordo com pinta de Português. Além daqui do encardido que vos escreve e que tantas vezes é confundido com a malta do Médio Oriente. Além da tripulação, toda ela tuga. Lá está, escurinho trabalha - incluindo eu, no tanto que se trabalha no acto de escrever - enquanto brancóide viaja - perdão, faz férias, pratica turismo.
Feita a viagem até Faro, almoçado no All´Garve, lá consegui chegar a casa no mesmo dia. A casa que é como quem diz a casa de meus pais. Cujas medidas têm  - como não me canso de dizer - o perímetro do meu país. 
Tudo isto a tempo de, na Terça-Feira, comemorar o aniversário de minha mãe. A tempo da ternura mais que tenra que só pode ser cultivada no meu conceito de família. Digo, de uma família digna.
Pelo meio, um par de amigos, entrecortados por uns copos. E uma odiável odisseia de burocracias. 
Até ver, tudo bem. Até voltar, um vendaval de dúvidas, um sem-número de sentimentos que só lembram a todas as pessoas de Fernando Pessoa. Até que se volte a aligeirar o alívio de aterrar.       
 

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