quarta-feira, 25 de junho de 2014

Dublin em Diferido

Silesian Shopping Centre - Katowice, Vitor Vicente, Junho de 2014

Despeço-me de Dublin. Num Domingo à noite e em diferido. Do alto de um décimo andar e diante de um centro comercial que tem tanto de capitalista como de soviético. Em poucas palavras, despeço-me de Dublin em Katowice. Porque nunca nos é permitido despedir enquanto não chegarmos ao próximo destino. 
Digo nós, os desterrados. Movidos pela Diáspora. Que em nada se desfaz e em tudo se dispersa. A direção é a de sempre. Ano que vem, em...Complete em silêncio a prece, quem tenha como marca-passo a Terra Prometida.
Quem são eles? São os que sabem que existe o sopro sagrado e um demónio disfarçado de vento - demónio que tende em ser adorado pelos pretensos artistas e errantes das emoções faz-de-conta e à flor da pele para inglês e outros povos facilmente embriagados verem. 
Eles, eles são os mesmos que não precisarão de explicação de maior para a leveza que me habitou, desde o dia em que disse a mais pessoas do que a mim mesmo de que iria deixar Dublin. (Eu fui o segundo a saber, depois de D-us). Então toda a cidade transformou-se numa colónia de férias e a pouca seriedade que me assiste deu lugar a um avassalador sarcasmo. 
Lembro-me que, tomado por esta leveza, percebi que só sei ser assustadoramente sério ou cultivar um sarcasmo ácido. Concluí que tem isso tem condicionado a minha relação com os outros. Coisa atroz. 
Constação não tão atroz, mas que antes muito me apraz: o irrevogável rebelde que há em mim. Que não se pode estrangular com gravatas ou guilhotinas em jeito de gentilezas a que o convívio com as gentes, de quando em vez, obriga. Que não se deixa polir nas palavras, nem que ponham tento nem termo na língua, por mais que brilhem os sapatos ou sorria com todos os brancos dentes que tem na boca. Que jamais terá como missão mudar este mundo mesquinho, por mais que dele cultive desdenhosa distância. Um rebelde sem causa e sem outras calças que não as compradas no Outlet de New York - e que faz questão de dizer Outlet e New York para confundir os curtos de cérebro e os canhotos crónicos e, aos olhos destes, parecer não ter nem calças, nem camisola onde exibir o emblema,  para os fazer ver estrelas de David.
Estou a ser duro? É a minha profissão: duro. O que, senão me falha a memória, foi o nome dado a um filme. Que, assim dito, até parece nome de película pornográfica. 
Chega de socos e de cinismo. Chega de querer fazer passar a ideia de que não sinto falta dos amigos que deixei em Dublin, tanto neste Domingo à noite, como em todas as noites e dias vindouros.
Despido de amigos e de calças, despeço-me também de Dublin e deste blog. Em nome da Diáspora vos digo: até qualquer dia. 

domingo, 22 de junho de 2014

Ares Pela Ásia V

In-Town Check-In - Hong Kong, Vitor Vicente, Abril de 2014

Tenho um carinho especial por Hong Kong. Foi este o aeroporto onde, pela primeira vez, desembarquei em paragens asiáticas. Foi neste país a que prefiro chamar de cidade onde, pela primeira vez, escutei a acústica das maquinetas asiáticas.
Tamanha é a dádiva que, na viagem de regresso, ao ter oito horas de conexão entre um voo e outro, não posso deixar de revisitar Hong Kong.
É certo que estou carregado, com dois sacos com compras de última hora. Mas quero ir à cidade de qualquer maneira, de preferência com as melhores maneiras.
Maneiras que uso para, no balcão de informações do aeroporto, perguntar se têm algum saco ou se sabem onde posso encontrar um - pois um dos meus acabou de rebentar. Uma das senhoras passa tudo o que tem num dos seus sacos para a sua mala e, uma vez esvaziado, oferece-mo. Num dos gestos mais generosos que, ao fim de cinquenta países, já presenciei em viagem.
Mais leve, decido deambular por Hong Kong. Fico-me por Kowloon. Primeiro, Kowloon East, mais Chinês e comunista, com todo o folclore Asiático, bazares e casas de massagem. Depois, Kowloon West, com todo o esplendor capitalista de que só Singapura consegue fazer sombra.
Em suma, adoro a Ásia - incluindo, claro, Hong Kong. 

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Ares pela Ásia IV

Praça de tuk-tuks em Lapu-Lapu, Vitor Vicente, Abril de 2014

"Eu não era para estar aqui", eis uma ideia que tem me vindo à cabeça em muitas das vezes que viajei. No caso das Filipinas, de tão fugidia ter sido a estadia, foram poucas as vezes que tive essa ideia - talvez pela própria natureza fugidia da estadia.
Lembrei-me mais de que, tal como um amigo me disse, as Filipinas é que não eram para estar aqui. De fato, deviam estar anexadas à América Central e, só por algum acaso, é que estão na Ásia.
Essa impressão passa, sobretudo, pelas pessoas - pois são mais as pessoas que fazem os lugares do que vice-versa. A começar pelos seguranças de porte "machote", passando pelas garinas que galam os gajos e tentam atrair as atenções através dos seus atributos, até aos buracos nas portas dos quartos de hotel. Buracos como estes são obra dos latinos, tais como os seguintes patrimónios: a abundante presença do Catolicismo, a corrupção a cem por cento e o Inglês a descambar para o "Spanglish", a soar a "sudaka".
Tudo isto faz-me com que em Lapu-Lapu, apesar do nome exótico, me possa sentir em casa. Longe é, de longe, a minha localização predileta.  

domingo, 8 de junho de 2014

Deixar Dublin IV

Com que então Katowice. Depois de quase quatro anos em Barcelona e passado pouco mais de quatro em Dublin, está a chegar a hora de partir para a Polónia.
Nada de novo. A não ser que, pela primeira vez, vou-me mudar para uma cidade que não conheço e que pertence a um país que já pisei.
Poderia de Barcelona dizer o mesmo. Arrogando-me do fato de já ter estado antes na Galiza. Mas nem a Catalunha, nem a Galiza espelham a Espanha - pelo menos, a mesma Espanha. Barcelona parece-se muito mais a Paris - pelo menos foi o que me pareceu nos primeiros dias na Catalunha, ainda que do mundo só conhecera a capital francesa. Por isso, prefiro dizer que quando fui para Barcelona não conhecia nada deste mundo.
De Dublin conhecia o que vi durante uma semana que por cá andei, em 2007. Depois de ter estado em Madrid e Estocolmo. Antes, muito antes, de ter estado em muitos lugares. Já era alguma coisa. Mas o fato de conhecer muito pouco deste mundo e não ter como comparar Dublin - as cidades, tal como as pessoas, conhecem-se e compreendem-se quando colocadas em contexto de comparação - faz-me acreditar que aqui cheguei dotado de conhecimento mundano meramente diminuto.
Quer isto dizer que a Katowice, embora nunca lá tenha estado, chegarei com o conhecimento colhido por todas as outras cidades dos cinquenta países que visitei. Da Polónia conheço - no sentido comum de conhecer - Varsóvia. É o suficiente, mais alguma boa gente polaca que conheci em Dublin, para perceber e deixar de perceber o povo. 
De resto, tanto a Polónia como o Leste Europeu, sempre me pareceram a terra dos familiares distantes, dos alguns primos Askhenazi afastados onde íamos, ano sim, ano não, nas férias do Verão. O Estio até está à porta. Deve ser por isso que tudo isto me soa como uma espécie de regresso. 

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Deixar Dublin III

Voltando à dívida de Dublin.
Foi Dublin, uma das capitais mais provincianas do velho continente, que me abriu as portas do mundo. Por mais que Barcelona me tenha acolhido como uma mãe e que tenha o estatuto de minha segunda cidade, foi este país que me puxou para fora de Portugal.
E, já estando cá, foi aqui que encontrei o trampolim para viajar pelo mundo fora. Por mais que de Barcelona tenha dado os primeiros saltos a vários lugares da Europa e me tenha permitido ir duas vezes à América Latina e me ter posto, pela primeira vez, em contato e confronto diário com pessoas de todos os países, foi nesta cidade que aprendi a mover-me pelo mundo. 
Durante muito tempo - quase todo o tempo que estive por cá - me perguntei porque tive que passar pelo que passei até aqui chegar. Porque raio tive que passar quase quatro épicos anos em Barcelona, antes de me mudar para a Irlanda? Porque raio um vulcão na Islândia rebentou e estancou todo o trânsito aéreo na Europa, precisamente no dia em que tinha o voo para Dublin? 
Era tudo parte do plano. Em que participei e provei que, independentemente do plano, o nosso papel não pode ser passivo. Cabe à nossa conduta definir-nos um papel. Enquanto esperamos que caia o pano. 

Ares pela Ásia III

Mercado-Flutuante - arredores de Bangkok, Vitor Vicente, Abril de 2014

É curioso, tão curioso, o fato de que vou começar esta crónica sobre a Tailândia a dizer que falo fluentemente Espanhol. A tal fluência será uma falácia acrescentar um certo amor pelo dito idioma. Para ser bem sincero, detesto o sotaque. Não obstante este mudo ódio, consigo ser fã de certas expressões espanholas. Por exemplo - e assim chegamos à Tailândia - desta: "venden de todo, incluso a su madre".
É a chamada força de expressão. Ou expressão exagerada. Até quando se trata da Tailândia. Até porque aqui o mercado das mulheres - que, entre os muitos mercados, é o "main" cá do sítio - mais depressa despacha suas filhas do que as respetivas mães.
Ele é o mercado das mulheres, o mercado-noturno, o mercado-comboio, o mercado-flutuante. Se a Irlanda é, como alguém disse no Facebook, um "grande fazendão", então a Tailândia não é mais uma Pátria, mas antes um hiper-mercado. Bangkok deixou de ser uma cidade e passou a ser um grande bar. Quanto a Krabi, como qualquer estância balnear, entre algumas pechinchas e meia dúzia de bugingangas, pratica preços de praia.
Brancóide paga. Com a falta de olhos que lhe carateriza a cara, vem à Tailândia - tida por terra dos sorrisos - fazer turismo de estar por casa. Afinal está tudo em Inglês, como na Califórnia.
Mais do que um hiper-mercado, a Tailândia é um grande bazar. Assim mesmo, na aceção tradicional da palavra. A sua economia - e, por consequência, a sua cultura - estão condenadas a ser arrendadas ao alheio. Reféns, sem outros meios e sem mais filhas e mães, acabaram por vender a própria alma. 

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Ares pela Ásia II

Songs of the Sea, Singapura, Vitor Vicente, Abril de 2014

Desde Platão que sabemos que as cidades não foram propriamente feitas para os poetas. Quem diz as cidades, diz as sociedades, os palcos, os fóruns da praça pública.
Ainda assim, tentemos supor que existem cidades poeto-friendly (o estrangeirismo, que eu normalmente evito e execro, tem um motivo). Assumindo isso, Singapura seria à medida dos poetas futuristas. Espécie que, enfim, já não existe. O mais próximo de futurismo artístico que nos é dado a assistir são os palermas que publicam fotos no Facebook com I-Phones e as fazem acompanhar de duas linhas digitadas às três polegadas.
Em dois dias que estive em Singapura, não fui capaz de escrever nada em direto. Quando muito, no aeroporto - que é o caso desta crónica que agora escrevo. Só não vou dizer que, além da Poesia, também a Literatura de Viagem foi pelas águas da marina de Singapura abaixo - pois, para mal da minha prosa ambulante, encontro-me condenado a intrometer versos subreptícios entre esses relatos pouco verídicos que faço das cidades que visito.
Dito isto, Singapura, essa bomba urbana, parece pôr em prática a palavra de Platão e cortar as mãos aos pobres dos poetas. As mãos, mas nada mais do que as mãos. Os olhos mantém-se invioláveis. Para que, por uma vez na vida, consigam esquecer-se que são escritores e lembrarem-se que são parte da amável multiplicidade de Singapura. 
Logrado isto, serão repostas as mãos aos poetas. De pé, na mesma plateia que a plebe e que eu, aplaudirão a cidade, o país, a polis perfeita para o poeta futurista.    

domingo, 1 de junho de 2014

Deixar Dublin II

Antes de avançar com o destino pós-Dublin, impõe-se-me contar como aqui cheguei. E, deste modo, desvendar a dívida que tenho a Dublin.
Corria o ano de 2006. Em que, durante a maior parte do tempo, estive desempregado ou com contratos precários. A viver mal e - perdoem-me a palavra - portuguesmente. Devastado com a ideia de, pela primeira vez, ter tido um programa para me mudar para o outro lado do Tejo e de tudo ter ido por água abaixo, pensei em partir da Pátria. (Agora que penso, tem sido entre destroços de programas-mor que se têm movimentado as maiores mudanças da minha vida).
Voltando ao ano de 2006. Que, só pelo fato de não ter Facebook, parece ter sido há muito tempo, algures num Paleolítico. Onde só haviam redes sociais que, hoje, nos parecem parolas. Onde tipos tímidos como eu chateavam garotas. (Isto, lembro agora, neste acesso nostálgico, muitos anos depois do MSN Messenger- um chat que foi a cura para a vida sexual de merda de muita gente). Numa dessas redes sociais, conversei com uma portuguesa que morava em Dublin (entretanto, como parece ser moda, mudou-se para Londres,) e que, ao ligar a webcam nalguns dos cybers da cidade, me mostrou os olhos para o mundo e me punha, mudo, a murmurar para comigo "É possível ser-se português e viver noutro país."
Estive quase, quase a mudar-me para Dublin. Pela tentação, pela oportunidade de ter um trabalho. Até cheguei a anunciá-lo. Um dia, no tal chat para pessoal com escassa vida sexual, o MSN, encontrei um amigo que morava em Barcelona e disse-lhe que me ia mudar para Dublin. O meu amigo ficou contente. Mas acrescentou que ficaria ainda mais contente se eu parasse na Catalunya - como se a Catalunya ficasse pelo caminho.
O fato de caminho para a Catalunya se fazer de comboio deu uma volta de 180 graus à minha cabeça e desviou-me de Dublin para me atirar a  Barcelona. Já de bilhete de comboio comprado, bolsos cheios (mais de sonhos do que de dinheiro), conheci uma Eslovena que se ia mudar para Paris e com quem fiquei de tentar uma relação que, à distância de Barcelona e não de Dublin, parecia viável.
Não deu em nada. Assim como ficar em Dublin, à última hora, por uma gaja. 

sábado, 31 de maio de 2014

Ares pelas Ásias I

Main Station - Taipei, Vitor Vicente, Abril de 2014


As cidades medem-se pelas suas montras.
No caso de Taipei, a maioria das ditas ostentam capacetes e maquinetas (por maquinetas entendo buginganga sofisticada).
Começo pelos capacetes. E confesso: como eu gostaria de ter um, à prova do ruído do trânsito. Eu explico, que é como quem diz: eu exponho-me. Eu estou no quarto de hotel, mas é como se estivesse a dormir na rua e a ouvir tudo o que se passa lá fora. Há demasiadas motorizadas nesta cidade. Tantas que até Beethoven, ressuscitado mas mouco, as conseguiria ouvir. E, claro, face a isto, não falta comércio de capacetes e acessórios afins. Menos mal que os Taiwaneses até são dados à auto-ironia - velho e desconhecido conceito no Oriente - e até comercializam capacetes com a Hello Kitty. Fazem-me lembrar a ironia dos Israelitas, com as suas kipás para todas as taras e manias. De resto, só os irmana uma certa pressa nos costumes.
Quanto às maquinetas, é vê-las nas montras, assim como nas mãos de toda a gente - sobretudo, dos passageiros do metro. E há sempre tanta gente no metro. Pudera, este pessoal trabalha que nem loucos. Todas as horas no Taipei são horas de ponta. Podia então compará-los aos Japoneses. Mas o pessoal daqui é demasiado amigável e até ajuda os estrangeiros - coisa em que jamais se pode equipar aos "japas", mais dados à manga e à pornografia de duas estrelas. 
Aliás, e para concluir, Taipei é a minha cidade favorita no Oriente. Sem as porcarias da China, nem bordéis a cada esquina. Com classe e ligada ao turbo. Elétrica, tão supersónica que se nos torna imunes ao cansaço e ao desgaste dos dias. Dá vontade de cá voltar. 

Deixar Dublin I

Pode parecer patranha, soar a contradição, mas é assunto sério. Todas as manhãs, quando acordo, dou um murro no despertador e dou graças a D-us por me dar mais um dia no mundo - às vezes, lembro-me ainda da canção "Se eu fosse um homem rico" do musical "O Violonista no Telhado", em que o personagem principal, depois de reconhecer perante D-us "que "não é vergonha nenhuma ser pobre, mas que tal condição também não é nenhuma honra", pede que lhe seja concedida "uma pequena fortuna".
Estas são, então, as minhas duas principais atividades matinais. As primeiras, sem as quais o dia não vai ser um dia. A que, desde Terça, juntei uma outra. A fascinante estranheza de me ter sido dito que, dentro de umas semanas, não vou mais acordar diariamente em Dublin.
Desde que sei que Dublin é uma questão de dias, toda a cidade passou a ter o estatuto do vento. Talvez não estejam a ver o que quero dizer com isto. Certo. É como se passasse a sentir a cidade, sem que a visse. Não a ouvisse mais do que em meros murmúrios. Como a um animal chamado aragem que beija, atabalhoado, que nem uma brisa. 
Sendo mais concreto, posso acrescentar que alguns amigos me parecem agora mais amigos. Enquanto alguns inimigos deixaram de o ser, quer dizer, deixaram de existir - ou passaram a ser simplesmente os filhos da puta que sempre foram. Tolero quase tudo, porque a quase tudo devoto um aristocrático desprezo. Vejo os defeitos de Dublin à escala do meu cansaço - e já não me esforço para alcançar a clareza. Em contrapartida, no que toca ao júbilo, emociono-me até à altura das estrelas, fico nostálgico com pequenos-nadas e com as noções do nunca-mais.
No fundo, é o preço da leveza. De correr atrás da vocação de nómada que me está no sangue, de correr atrás da minha sombra, através das veias - e chamar a isso de vida. 
E dizer: ou vou ser nómada, ou nunca vou ser nada.    

domingo, 16 de março de 2014

Diáspora de Dublin XXXVI

Canal em Dublin 4, Vitor Vicente, Junho de 2013

É curioso. Dublin 4 é uma das minhas zonas preferidas da cidade e, ao mesmo tempo, onde mais sou alvo de racismo. Outras zonas (digo, de racismo) são a margem norte, O' Connell Street e arredores, onde o obram vagabundos e drogados que, dada a falta de cérebro, não são dignos do termo bandidos. Aí o racismo é do tipo rural, em que a deplorável prática consiste em pouco mais que detestar tudo o que aparente ser diferente e desconhecido. Em Dublin 4 é outra fruta: trata-se de um racismo depurado e que resulta de uma diligente triagem entre quem segregar e quem tolerar e até aceitar. Tal como em Portugal.
É- novamente - um caso curioso. Em Portugal, no que toca a esse termo controverso que é a raça, eu sou branco. Na Irlanda e na Europa - digo e, por tratarem-se de realidades separadas - eu sou escuro. Daí que quando me refiro aos branquelas, regra geral, não sou entendido pelos portugueses. Na verdade, o desentendimento não é de agora. Já quando vivia entre eles, os brancos, não nos entendíamos. Nem com os pretos, quero dizer, os negros. Ou vai se dar o caso de me chamarem caucasiano, coisa que, diga-se, até combina mais com a minha tez. 
Mas deixemos para trás o Cáucaso e o Atlântico. O caso aqui é o de Dublin 4, a zona da cidade mais inglesa e menos irlandesa, logo um bocadinho mais continental, em tudo de bom e de mau que esse título acarreta. O racismo, esse, continua. Porque os irlandeses, para lá das portas dos "pubs" e sem "pints" em punho, são tão racistas quanto os outros brancóides. Um complexo de superioridade tão cretino quanto o dos pretos com a valentia da verga ou dos latinos que pensam poder enganar meio mundo à custa de manhas e artimanhas.
Nesta mixórdia, eureka, consigo encontrar a explicação para o meu conforto enquanto alvo de racismo pelas bandas de Dublin 4. Tão simples como sentir-me ainda mais distinto.  

sábado, 8 de março de 2014

Diáspora de Dublin XXXV

Estátua de Alfredo da Silva - Barreiro, Fevereiro de 2014, Vitor Vicente

É fato: retomei o gosto pelo negro, no que à vestimenta toca. Não se trata, todavia, da velha vestimenta, de que hoje faço chacota, quando a ostenta aqueles a quem já caducou a rebeldia de sair à rua conforme lhes dita a gana. No meu caso, o revivalismo pelo negro tem que ver com a constante revisão a que me sujeito. É, de resto, por isso que me olho ao espelho: para ver se ainda me revejo no meu reflexo.
O roupeiro - como, aliás, a própria casa - reflete o nosso estado de espírito. O roupeiro revela-me que eu voltei - e assim volto ao assunto - ao negro e que esse regresso tem que ver com o revisitar-me, com o redescobrir-me.
Eis o sentimento de voltar a envergar a velha casaca. Não que com isso queira dizer que tenho andado com a casaca virada do avesso. Foi tudo tão simples como ter questionado a casaca, experimentá-la ao contrário, para depois escolher a que melhor entendo combinar comigo. Exercício espiritual que muito boa e dogmática gente, sejam politicamente de direita ou de esquerda, jamais fez. Quem é que, alguma vez na vida, se atreveu a pôr em cheque as suas convições e/ou crenças e a ver o mundo na versão inversa do que habitualmente vê? Aposto que poucos, quase nenhuns de nós.
Posso parecer pretensioso, mas eu não quero ser pertença desse grupo. Por outro lado, também não assinalarei o luto pelo abate de consciências e pela decadência da cidadania, tanto na urbe, como no campo. O meu luto é outro. O meu negro também. Existem várias tonalidades de negro, assim como as há de todas as cores. Eu só reivindico duas coisas. Uma é aquela cor que seja só minha. A outra é que se extinga no mundo o pior dos racismos - que consiste, nada mais e nada menos, do que em segregar aquele que tenha uma cor que seja só a sua. 

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Diáspora de Dublin XXXIV

Carrer Aribau - Barcelona, Vitor Vicente, Setembro de 2012

Lá no escritório, tenho um colega que anda todo contente porque se vai casar. Normal. Tal sentimento de sedentária e gregária satisfação nem deveria servir de mote para o que se quer de uma crónica. 
Só que o meu colega, além de contente com o casório, está super feliz com o fato de mudar de casa, por estar convencido que, desta, será de vez. É que esta vez será a quadragésima vez que o compincha do meu colega mudará de casa em quarenta errantes anos de idade.
É muito, é mais que muito. É de nómada. Ao ouvir isto, calado, pus-me a fazer contas à vida, mais propiamente a contabilizar em quantas casas vivi, com menos dez anos de vida no pêlo que o meu colega. 
Antes de avançar com o resultado, quero dizer que nunca tinha feito tal conta. Eu até sou maluquinho pelos cálculos e pelas mentais matemáticas. Várias vezes, já dei por mim a contar tanto o número de países que já visitei, como o número de parceiras com quem já dormi. 
Não vou revelar o resultado da segunda contagem. Posso apenas dizer que é superior ao número de casas onde vivi e menor que os países que já pisei e que são quarenta e seis. Quanto às casas, até agora, foram dezasseis. (Digo até agora, por lembrar-me do meu vizinho do lado, um Catalão de gema que mora no mesmo estúdio há dez anos e o confessa, ciente dos tempos corridos em que vivemos, com vergonha e cabisbaixo). 
Também não me vou pôr aqui a contar, caso a caso - que é como quem diz, casa a casa - as peripécias épicas que me levaram de um lado para o outro. Tal empresa merecia outro post, um só post
A este post apenas cabe confessar que, às vezes, me parece que sou um andarilho há séculos, há milénios mesmo. E que a única coisa que aprendi é que, afinal de contas e ao contrário do que os acomodados contam e nos querem fazer crer, andarilhar não consiste em trazer a casa às costas, mas sim em saber que a nossa única casa são as nossas próprias costas. 
Porque esta nossa casa levamos até para a nossa derradeira morada, para o qualquer desterro onde a morte nos dê abrigo ou nos deixe entregues e à mercê do relento. 
Eu cá só espero que, antes da hora da minha morte, o "google maps" já tenha uma versão de "google mortos" e nos mostre para onde vamos depois da vida. Uma espécie de sinistro "Street view".

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Diáspora de Dublin XXXIII

Amanhecer em Rathmines - Dublin, Vitor Vicente, Janeiro de 2014

Das poucas vezes que, daqui de casa, tenho tido oportunidade para mandar parar o mundo e assistir à realidade a um ritmo alternativo, durante um desses magistrais momentos, tenho-me intrigado com a cúpula verde - verdíssima, à noite - da igreja que, sentado no sofá, vejo através da janela.
Antes de avançar na intriga, sinto-me no dever (que é como quem diz, ser direito do leitor estar ao corrente) que se trata da primeira vez que, aqui em Dublin, moro numa casa com vista digna desse nome. Primeiro, morei num pequeno quarto de uma grande casa e cuja única vista era o quintal e as criancas que brincavam nesse quintal. Depois, habitei numa casa-cave e que dava também para as traseiras. Por fim, bem grado o upgrade, mudei-me para um apartamento de condomínio fechado, cujas janelas também davam para o lado de trás do edifício. 
Voltamos então à igreja que, de momento só avistamos mas onde, várias vezes, já estivemos. Uma delas, memorável, em que o meu pai, senhor de aparência anglo-saxónica ou irlandesa mas marxista-leninista convicto, foi confundido com um dos fiéis que, todo o santo domingo, pica o ponto na missa. Até o coitado do Cristo ia caindo da cruz e, por pouco, lá se iam dois mil e tal anos de histórias da caroxinha e de outras historietas mal contadas afins.
O caso aqui não é o da cruz, mas o da cúpula. Dessa cúpula verde, verdíssima, à noite, e que quanto mais verde, mais me dá a ideia que nos vê. Que nos observa com o olhar furtivo de detetive.
Na verdade, esta sensação não é nova. Tambem não é do tempo em que os apóstolos falavam, mas quase. Data - para ser mais preciso -de quando morava no topo desta rua e, ao descê-la, na direção do centro da cidade, me parecia que a cúpula desta igreja queria conversa e que, à falta de interlocutor, dava-me que falar com os meus confessores botões.
Como alguns atrás, algures entre o tempo dos apóstolos e o dia em que cheguei (oh, odisseia ferro-marítima!) a Dublin, quando ainda vivia em Barcelona, e me parecia que, de lá do alto, a igreja que mais tarde soube ser a igreja do Tibidabo, essa igreja tão turística quanto profana, controlava toda a cidade, Ramblas incluídas. As igrejas sempre me intrigaram. Desde a infância, passando pela ateia adolescência. Até nos anos épicos de Barcelona, em que vivia a menor das realidades com a etiqueta do mais romântico e exagerado dos estetas. 
Ate pode ser que, tanto a igreja do Tibidabo e a cúpula verde - verdíssima, à noite - da igreja nao me estejam a ver, nem sequer a controlar. Contudo, estou certo que uma casa não é só a casa, que uma casa não se esgota nas quatro paredes. Que uma casa também se compõe do caminho de casa, do quotidiano. Do que de mundo chega até dentro de casa.  

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Diáspora de Dublin XXXII


Rathmines - Dublin, Vitor Vicente, Janeiro de 2014

Mudei de casa há, mais ou menos, dois meses e meio. Tirando o fato de agora não ter mais ninguém entre as quatro paredes, não foi grande mudança. Geograficamente falando, mudei-me para, mais ou menos, meio quilómetro de distância do lugar onde antes vivia. Semelhante distância separa-me do lugar onde morei antes de me mudar para o lugar donde me fui embora. Parece complicado, mas podia ser pior. Mais não é do que viver em círculos e em ciclos do mais do mesmo.
Ou em circos. Circos de indomáveis feras que, de há dois meses e meio para cá, me têm ocupado a cabeça com mais mundo do que a minha cabeça pode portar e que me têm obrigado a dar mais e mais de mim e do meu comportamento, numa dose superior à que o mundo, só a custo, consegue aceitar.
Conclusão: que o quotidiano desta casa tem tido demasiado mundo para que se possa permitir à leveza de postular viagens verídicas ou de fantasia, ou simplesmente vaguear em périplos passados. Nessa sequência, nem poeira, nem ventos têm sacudido esta casa, de quarto e sala separados. Antes uma aragem de entra e sai que nao me dá nem um segundo para agradecer ao sopro sagrado que nos anima no dia-a-dia.
Hajam Ásias nos horizontes de Abril e uma viagem para Portugal daqui a pouco mais que duas semanas. Hajam asas para os voos domésticos. Além de asas, haja fôlego, quando o quotidiano, a casa e sei lá mais quem, numa só voz, num uníssono orquestral, querem de mim fazer um falcão.
 

Seguidores