Animação num restaurante mineiro - Ouro Preto, Vitor Vicente, Julho de 2009
Estive três vezes no Brasil. Contudo, nunca coincidi com a época do Carnaval. Nem sequer cheirei aquilo a que o saber comum chama de "Carnaval o ano todo." Ainda assim, sempre que chega o Carnaval, vejo-me a voltar ao Brasil.
Porque há terras que deixamos para trás com despego, como se nunca lá estivéssemos estado. Em contrapartida, há países que nos são permanentes e nos deixam marcas tão perenes quanto uma peste.
É aí que eu, ser mais dado aos subterrâneos do que às actividades sem sentido que decorrem à superfície e no seio da sociedade, é aí que eu queria chegar: ao Atlas das Almas.
Creio que o modo como encaro o Carnaval mede muito a leveza, ou falta dela, com que me tenho relacionado com o mundo. Não fosse o mundo dos outros um medonho e - quando a mood está longe de ser a melhor - abominável baile de máscaras.
Para começar, ainda criança, cresceu em mim uma revolta contra todos os actos calcinados pelo vale-tudo a que, em Portugal, se associa o Carnaval. Tal revolta, a par de outras, visava o que de carnavalesco se passava no bairro. Basicamente, os rapazes enchiam balões de água e arremessavam os ditos na direcção das raparigas. Assim sendo, havia que aceitar o facto de a minha irmã andar um mês inteiro a tremer de medo, ou mesmo a tremer de frio, caso estivesse ensopada, digo caso tivesse sido alvejada. Os mais maldosos - digo, os mais merdosos - também atiravam ovos. Depois, já no dia de Entrudo propriamente dito, a maior parte dos pais mascarava a maior parte dos meninos de alguma coisa. E era ver a alegria generalizada, menos em mim.
Depois, digo uns bons anos depois, na adolescência, o fim de semana do Carnaval era dedicado a bailes com música brasileira, invariavelmente aos altos berros. Nestes eventos - eventos, escrevo eu, sem encontrar outra palavra que não enobreça estes estúpidos encontros de massas - davam-se os primeiros beijos e beliscavam-se as primeiras bundas. Os pais, rendidos ao argumentos irracionais do Carnaval, permitiam que os putos saíssem até mais tarde. Para a alegria regrada a cachaça da rapaziada. Alegria que também me era alheia.
Já teenager, pré-universitário ou a dar os primeiros passos de um percurso fugaz na faculdade, o Carnaval passou a ser o segundo Halloween da comunidade gótica a que eu pertencia - no pouco a que me era permitido pertencer a grupos e tribos. Hoje em dia, já se celebra o Halloween em muita pista. Já não há razões para os góticos se gabarem de celebrarem o Halloween duas vezes.
Seguiram-se anos de Carnavais brancos, de Carnavais incolores. Tanto nos anos antes de deixar Portugal, como nos primeiro anos que passei no outro lado da Península. Simplesmente, deixava desdenhosamente o calendário da civilização passar-me ao lado. A única coisa que me deixava lixado era, já em Barcelona, saber que em Portugal o dia de Entrudo era feriado. Mas isso depressa deitei por terra, a partir do dia em que comecei a trabalhar com turismo. Desde então que tenho um calendário à parte, às avessas dos ofícios dos carimbos.
Isso de ter trabalhado com turismo, junto com várias viagens pelo próprio pé, fez-me ver o Carnaval que nunca vi, que nunca sequer tentara ver. De olhos outrados, passei a conceber o Carnaval brasileiro como mais uma manifestação cultural e típica de uma certa etnia . Como uma daquelas coisas que nunca fez mal a ninguém ter visto uma vez na vida. Quem diz o Carnaval do Rio, diz atravessar o Canal do Panamá ou despender uma tarde num Barbecue na Austrália.
Isso do turismo e, já na Irlanda, também o conseguir encontrar no sol o sinónimo de paz, de prazer, de preguiça. De prazer da paz, do prazer da preguiça. Tudo isso, mas também ter passado três boas temporadas no Brasil.
Dito isto, penso que o Carnaval muda de data, mas não muda nada. A não ser nós mesmos que, mais ou menos místicos, mais ou menos viajados, tendemos a ser voláteis. O Carnaval, queira-se ou não, vai continuar lá, mesmo enquanto cambiarmos o nosso conhecimento sobre ele, que é como quem diz sobre nós mesmos. O Carnaval está lá, vai continuar lá, em datas desconhecidas, após termos desaparecido do mapa.
Até lá, sempre que chega a hora do Carnaval, eu vou voltar ao Brasil. Mesmo que, como nas anteriores vezes, eu volte ao Brasil sem coincidir com a época do Carnaval.