terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Balcãs & Benelux IV

Uma bica no coração do continente - Luxemburgo, Vitor Vicente, Novembro de 2013

Do Luxemburgo, por estar geograficamente onde está e pela parca história, pouco mais se espera do que um certo encanto europeu e o carisma das cidades do velho continente.
O Luxemburgo cumpre essas expetativas na perfeição. Tem a excelência sóbria e nobre da Europa, assim como um charme ocidentalíssimo. 
Na Gare, em redor da Gare, é um vai e vem de comboios e autocarros a toda a hora e para todo o lugar. Se queremos paz, podemos perder-nos nos passeios pedonais no centro da cidade ou entre os palácios e os edifícios públicos.
Um pequeno luxo. No fundo, o Luxemburgo é um pequeno luxo. 
Onde vinte e cinco por cento da população é Portuguesa. Dos quais metade representa a força de trabalho de uma das economias mais estáveis da Europa. Enquanto a outra  - estima-se - vive de rendimentos do governo. 
Lado a lado, além do Luxemburgo e dos seus países vizinhos, temos o Português de tipo trabalhador, de índole incansável e o Português que se apraz na condição de parasita e que faz deste principiado um privilégio para a sua preguiça.
Menos mal que a minha portugalidade não é evidente. Há por cá Italianos e Árabes que cheguem para ter a identidade nublada. 

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Balcãs & Benelux III

Memorial de Mardasson - Bastogne, Vitor Vicente, Novembro de 2013

Há pouco mais de um mês, Varsóvia. Há uns dias atrás, Mostar. Primeiro, a Polónia. Depois, a Bósnia. Agora?
Agora, a Bélgica. Onde ninguém faz mal a uma mosca, quanto muito destina uma criança a ser enterrada no mesmo derradeiro chão que muitas outras crianças: no quintal. 
Fora a pedofilia, o único problema dos belgas é terem o país plantado no coração do continente e levarem com todas as frentes e ricochetes da Europa. Assim sendo, certo dia, na cidade de Bastogne, paredes meias com o Luxemburgo, encontraram-se as tropas Americanas e Alemãs. 
As Americanas arrasaram as Alemãs. Fizeram-lhe um cerco e deram-lhe uma coça. Não uma coça qualquer, mas sim uma coça histórica, monumental. 
Para que o mundo se lembre, foi erguido um memorial nos arredores da cidade - que é como quem diz quase no Luxemburgo. Além do memorial, também se encontram muitos tanques espalhados pela cidade.
Além dos vestígios bélicos, Bastogne tem tudo o que se pode esperar de uma cidade Belga: uma praça, uma catedral, umas quantas cafetarias e o cheiro a crepes. 
Hoje em dia, a América detém a hegemonia mundial. Não fosse a América, seriam os Árabes ou os Chineses. Agora escolha.
Eu cá não tenho dúvidas. Apraz-me ver a bandeira Americana, lado a lado com a bandeira Europeia. Apraz-me ver que as páginas principais da história escreveram-se e continuar-se-ão a escrever no velho continente. No Ocidente. 

domingo, 17 de novembro de 2013

Balcãs & Benelux II


Mostar vista da ponte Stari Most, Vitor Vicente, Outubro de 2013

Mostar não é banhada pelo mar, mas é como se fosse. Mostar está dividida por um rio, como quase todas as cidades europeias, mas é como se na Europa não estivesse. A ponte pedonal, que liga o bairro Muçulmano ao bairro Católico, cuja única competição é ver quem constrói a cúpula mais alta, essa ponte transforma toda Mostar num esbelto postal.
De resto, a realidade de Mostar é uma realidade rural. Ladeada por montanhas, assente num vale, repleta de ruínas recentes. À imagem de toda a restante Bósnia, onde o único mar que chegou foi o mar da História.
O império Otomano, uma vez deposto o Império Romano, foi o grande império de outrora. O império Otomano ainda não foi embora. Está ainda nos mercados e nos modos. Está até nas cabeças sem capacete que dirigem as motorizadas roubadas.
Mas há mais mar. Há o mar de sangue que banha ambas as margens da cidade. As feridas são um fato mais que visivel, as feridas cicatrizam a cidade por completo, em cada edificio esburacado.  
Mostar é então uma cidade banhada por dois mares que, no fundo, são um e o mesmo mar: o mar da História. Por maior que tenha sido o império Otomano, a carnificina de que fomos cúmplices é nossa contemporânea, demasiado contemporânea para que possa ser lavada pelo que ficou dos tempos imperiais de outrora.
Certamente que o sangue dos inocentes será para sempre. Quanto à ponte pedonal, é a mais bela por onde passei. Por isso, à semelhança do pôr-do-sol de Zadar,  também esta ponte é para sempre. De mais não precisei para sair desta cidade. Com um certo sorriso. Contente.  

domingo, 10 de novembro de 2013

Balcãs & Benelux I

O Crepúsculo na Costa Croata - Zadar, Vitor Vicente, Outubro de 2013

Enquanto errante, habituado a deixar terras para trás e a estender tapetes e tendas para diante, há muito que o exercício na questão "De que vou ter saudades?" faz parte da minha rotina diária.
Por exemplo, no dia em que deixar Dublin, certamente que vou sentir falta dos crepúsculos lentos e tardios nas noite de Estio. Dessa noite que é uma espécie de criança com cio e que, contrariada, adia e atrasa aquilo a que a querem condenada: que esteja coberta, qual viúva sem vida, com um negro véu.
Quem diz a Irlanda, diz o mundo. Do que ainda me resta nesta terra, não penso passar todo esse tempo no Èire. Porém, parta para onde parta, à Irlanda ou a outro lugar lá no alto voltarei de vez em quanto, só para assitir ao arrastado anoitecer. 
Quem diz a Irlanda, diz agora também Zadar. O crepúsculo na Croácia é curto, contudo intenso. Aproxime-se do passeio marítimo da cidade, de preferência em pleno pôr-do-sol. Sente-se (sinta-se) no Órgão do Mar e certamente assinar-se-à por baixo as certeiras palavras de Alfred Hitchcock: "The sunset of Zadar is the most world's most beautiful and incomparably better than in Key West, Florida". 
Jamais se associaria o crepúsculo à Croácia. De resto, à Croácia, jamais se assocaria àquilo a que a recente vaga de turismo tem atraído a estas bandas Adriáticas: praia, boa mesa, vida noturna. Antes de toda esta propaganda, as cidades croatas simplesmente pertenciam ao cenário do pós-guerra.
Muito do turismo Croata deve às montanhas e à costa. Mais: é o mar que torna a Croácia um atípico país da Europa de Leste. Os próprios Croatas, entre o pessoal que viveu atrás da cortina de ferro, também são atípicos. Tal como os Portugueses são atípicos latinos. Mais ainda: os Croatas e os Portugueses são incrivelmente parecidos.
Claro que, por aqui, também há algumas anjinhas Adriáticas, um pouco de troc-troc que não chega para competir com as filhas da Mãe Rússia. De soviético só há aqui o suficiente para se assemelhar às inesperadas praias de Jurmala, na Letónia. 
Em suma, Zadar, tal como a costa Croata, vivem do sol. Sobretudo, do pôr-do-sol. Seja como fôr, no Sul. 

domingo, 13 de outubro de 2013

O Triplete do Leste III

A loucura do troc-troc e do trânsito do Azerbaijão - Baku, Vitor Vicente, Setembro de 2013

Não, os Nórdicos também comem pão à refeição. Só que, muitas vezes, a refeição resume-se ao pão. Pão com pão, e pouco mais. Já o pessoal do Sul come pão e mais alguma coisa. Pão e, a maior parte das vezes, muitas mais coisas. Pão com condimento, pão como complemento.
Estando o Azerbaijão a Sul, o pão, como não podia deixar de ser, é sempre servido como um extra e sem custos adicionais -e mais, isso acontece com quase todos os pratos. Um pão inteiro e que não é a refeição por completo. Nestas e noutras coisas, o Azerbaijão está mais a Sul do que a Leste.
De resto, da mãe Rússia pouco mais resta do que as vestimentas e o calçado troc-troc do mulherio. Para cada véu, no mínimo, há sete mini-saias e setenta saltos altos à la Soviética.
O bom de Baku é que, à bela e sensual semelhança das cidades que estiveram debaixo da cortina de ferro, também aqui a esquerda é execrada. A esquerda, isto é, os tiques e trejeitos de esquerda; desta estúpida neo-esquerda, em que as mulheres passaram a provocar os homens por se quererem parecer a eles. Por exemplo: nos penteados e nas calças jeans.
Aqui no Azerbaijão (e que triste é escrever aqui, ciente de que dizer aqui é um tema de tempo) é ao contrário. Os tacões é que atacam o vaso coronário do bicho homem. Nem o Islão, nem o vizinho Irão em que se muçulmaniza a malta, ninguém manda ninguém cobrir os corpos, as caras. Não se cobre nada, coisíssima nenhuma e deixam-se os corpos, as caras, tudo às claras.
Claro que há quem se queira cobrir por razões religiosas. Está no seu direito, pois todos o temos o direito a não ser iguais e a assinalar a nossa diferença, em última instância a nossa individualidade. Tal prática tanto o fazem mulheres muçulmanas, como ortodoxas cristãs ou judias.
No fundo, aqui no Azerbaijão os modos são uma mistura de Sul com uma pitada de Leste. A modos (modos, esta é a palavra) que aqui o mister (mister, essa é a palavra) se sentiu em casa - e foi até, várias vezes, confundido com um dos da casa. 
Princesas por quem se perder, portanto, não faltam. Pudesse eu ser um dos Príncipes desta Pérsia perdida.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

O Triplete do Leste II

Termas-mor de Budapeste, Vitor Vicente, Setembro de 2013

Antes de mais, um aviso à navegação: cada crónica que escrevo sobre cada cidade, faço questão de que seja escrita quando ainda estou nessa cidade. Exceção abro à série "Variações sobre Velhas Viagens". Mas é por isso que essa série de crónicas se chama como se chama. E, enquanto exceção, confirma duas coisas: primeiro, a regra, segundo que eu sou uma pessoa de regras.
A crónica que agora escrevo acerca de Budapeste também é uma exceção. É uma exceção da exceção - e por aí o leitor pode adivinhar que daqui não virá nada de excecional. A presente crónica é, pois, escrita no passado, digamos em diferido, sem enfileirar a série "Variações sobre Velhas Viagens". Ainda que esteja a ser escrita no conforto quotidiano da cama, que é a melhor escrivaninha que encontrei cá em casa - sendo a cama a melhor escrivaninha que encontrei em qualquer das muitas casas onde morei.
Dito isto, devo ainda acrescentar que fui - ou melhor, passei, pois tanto a ida como a volta foram conexões da viagem para Baku - por Budapeste como se estivesse à porta de casa. Assim (maneiras) sendo, esta segunda via de crónica, escrita de cotovelos assentes no colchão, não é tão descabida como isso. Ou isso quero eu fazer parecer à camada de nervos de aço, que não me perdoa por ter perdido a crónica que escrevi na cafetaria das termas de Budapeste.
A Budapeste -vamos lá, sem mais preâmbulos - a Budapeste, pouco mais pedi que uma pseudo-experiência de residente. De cidadania emprestada por dois dias, no primeiro deles, lá fui almoçar ao Espinoza, que é um dos bons restaurantes Judeus junto da Sinagoga-mor da Húngria - e da Europa, não fosse a maior Sinagoga do continente. Para me fazer passar pelo turista que sou, ainda tirei fotos ao Parlamento e à Catedral. Para dizer que estive em Budapeste, atravessei uma das pontes sobre o Danúbio e, pela primeira vez na vida, fui ao lado de lá, a Buda. 
No regresso, espraiei-me nas Termas. Não numas termas quaisquer, mas nas Termas-mor da Hungria - e da Europa, não fossem estas termas as maiores céu aberto do continente. E assim fui pseudo-residente em Budapeste durante dois dias. Como pseudo-residente vou sendo em Dublin há três anos e meio. Na verdade, acho que nasci votado para não conseguir corporizar a condição de residente em lado nenhum. Mas não estou preocupado, por enquanto, em encontrar a Terra Prometida.
Só queria mesmo era ter encontrado a crónica que escrevi na cafeteria das termas(-mor) de Budapeste. Terá ficado com a toalha? Com a toalha que, por estar molhada, optei por não pôr na mala e não trazer para casa? 

domingo, 6 de outubro de 2013

O Triplete do Leste I

As balas vivas de Varsóvia, Vitor Vicente, Setembro de 2013 

Exitem cidades conhecidas por serem cidades cinzentas. É, sobretudo, o caso de grandes cidades, sejam ou não capitais de um país, sejam ou não capitais de uma região.
O caso de Varsóvia, capital da Polónia, é diferentes das demais capitais e das grandes cidades cinzentas. Tão diferente que é elevado ao estatuto de distinto.
Varsóvia não é mais uma cidade cinzenta, mas sim a cidade cinza. Ou a Fénix-feita-cidade, cuja realidade é o resultado do renascer das cinzas. 
Cinzas que são nossas contemporâneas. Cinzas que também são nossas. Como fosse também nossa a culpa por terem virado Varsóvia do avesso. 
Hoje em dia, Varsóvia veste o novo lado a lado com o velho. Ao comungar esse charme com Berlim, esta cidade torna-se parente próxima da capital da Alemanha - mais próxima até do que de outras cidades polacas. Já Berlim, por seu lado, mais depressa podia ser prima das cidades polacas arrasadas pela guerra, do que de outras cidades alemãs.
Primas que, mais que assistiram, foram palco principal e forneceram personagens aos maiores horrores da história da Humanidade. O palco de Varsóvia ainda está aberto e, aqui e ali, assinalado com marca de alvo.
Em Varsóvia não há coração inviolável. As feridas foram um facto e ainda não foram fechadas. Nós continuamos a repetir erros. Os mesmos, os eternos erros. A rotina humana é repetir erros e em Varsóvia é vê-lo a olhos vistos.
Saltam à vista, na velha-nova Varsóvia de agora, os pactos (e os papos) de Varsóvia. As cinzas de Varsóvia são tão vivas que, num instante, viram isqueiros. Cinco segundos e já a ignição incidiu no músculo cardíaco. 
Não há como ficar indiferente às indecências de Varsóvia. 

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Micro-cidades dentro doutras cidades VII

Polish Shop - Waterford, Vitor Vicente, Agosto de 2013

Em vésperas de, pela primeira vez nesta vida (pelas outras não respondo), visitar a Polónia, recordo e evoco a minha mais recente viagem. 
Que foi, se bem se lembram os fiéis deste Blog, a Waterford. É certo que só ir e voltar no mesmo dia. Porém, depois de tantos dias, mais de dois meses, sem ir a nenhum lugar, pareceu-me uma verdadeira e valente viagem.
Esperava encontrar-me com uma Irlanda mais Irlandesa. Para isso, em vez de ir para Sul, devia ter ido na direcção Oeste. Estou-me a fiar nas palavras do taxista que, esta manhã, me trouxe do supermercado a casa (pois, em Dublin, mais depressa aparece um táxi do que um autocarro).
Em vez da Pint no Pub, que é uma espécie de Prego no Pão cá do sítio, ou seja um must, optei por almoçar num restaurante Polaco. Que me pareceu ficar no bairro Polaco da vila ou, segundo os standards Irlandeses, da cidade. Pelo menos, o restaurante ficava ao lado de um café Polaco (café é coisa do Continente), de duas ou três lojas de comida do Leste da Europa e de uma Sex Shop onde se conseguia ouvir o troc-troc.
Talvez este bairro Polaco nem exista. Talvez fosse fruto da minha fome (já eram quase três da tarde) e da fome de Continente que as ilhas fomentam nos espírito de quem por cá habita. Quanto ao frango, assim como o Nestea, de fantasia não tinham nada. 
No fim de contas, pouco importa averiguar que há aqui de factual. Aos Polacos cumpre trazer à ilha o que do Continente não chega cá e o dar corpo ao arquétipo de emigrante estúpido que os outros emigrantes, de pança cheia com as valiosas coroas Irlandesas, execram e/ou fazem chacota.
Que isto não chegue aos ouvidos dos Polacos grandões da pequena Polónia de Waterford ou de qualquer parte da Irlanda e do mundo. Caso contrário, com certeza que haverá porrada gratuita e se partirão os últimos cristais da vila (corrijo e, agora para me salvaguardar dos santos da casa, digo da cidade). 
A Polónia nunca teve tradição de emigração, nem qualquer colónia entre as suas fronteiras e viveu encurralada na eterna bulha entre os colossos Russos e o colossos Alemães. Não é que isso sirva de desculpa (alô, Belfast?). Nem tenha servido de muito para melhorar a conduta dos velhos impérios Ibéricos e Inglês  Veja-se como continuam a ser mal recebidos os emigrantes em Portugal, veja-se como os emigrantes continuam a fazer pouco ou nenhum esforço para se integrar em Inglaterra.
Dada mais uma porrada numa data de partes, retiro-me. Fico-me, contente, pelo frango, o Nestea e o troc-troc. 

domingo, 8 de setembro de 2013

Micro-cidades dentro doutras Cidades VI

Chinatown - Montreal, Vitor Vicente, Abril de 2011

Não guardo muitas memórias de Montreal. O que é francamente mau, pois é missão das viagens encher as gavetas com o que do mundo nos encheu o olho.
Na verdade, a Montreal pouco mais pedi que me mostrasse onde nasceu e e cresceu Leonard Cohen, que me desse a conhecer uma comunidade de emigrantes Portugueses à antiga e, claro, um pouco do Canadá enquanto país diferente e simultaneamente parecido com os Estados Unidos.
Tenho, pois, pouca coisa presente. Uma das escassas imagens marcantes de Montreal é um daqueles arcos vermelhos que assinalam que se está na Ásia ou em bairro Asiático. Por outras palavras, que se chegou à China. Na altura, ver esse vermelho a olho vivo cimentou-me a certeza de que estava a poucos passos (como quem diz, a poucos países) da Ásia (como quem diz, da China).
Alguns meses depois, ao voltar então da China propriamente dita, compreendi que, após se estar na Ásia, vê-se o mundo com outros olhos. Como se o mundo parecesse maior mas, ao mesmo tempo, de mais fácil acesso.
A Ásia é sinónimo de exótico. Argumentarão alguns que os Europeus também são exóticos aos olhos dos Asiáticos. Esquecem que a Europa todos os dias chega à China, mas o inverso não. Quando muito, nós não chegamos às chamadas cochichinas.
Mas às cochichinas nem a China, nem coisíssima nenhuma, chegam.
Nada, nem a Chinatown de Montreal, nem nenhuma Chinatown, nem Montreal, nem o Canadá. As cochichinas desta vida (que conseguem ser desta vida, sem serem deste mundo) vivem à margem do mundo. BBC ou CNN não lhes significa nada, nem sequer três letras. São ignorantes porque são ignorantes. A eles o conhecimento de História e Geografia, não é esperado, nem exigido.
A nós, não. Temos ferramentas para testar tudo, para aprender o básico dos básicos. Mas também não temos que, por isso, nos armar em doutores. Até porque doutores são os médicos e pouco mais. Mas isso não é mal desta Montreal. Só da comunidade Portuguesa desta e de todas as cidades onde hajam comunidades Portuguesas. É um mal de Portugal.  

sábado, 7 de setembro de 2013

Micro-cidades dentro doutras Cidades V

Rambla Raval - Barcelona, Vitor Vicente, Setembro de 2012

Morei quase um mês no Raval. Se contar com a semana em que morei em dois hostels, se é que é possível uma pessoa morar em hostels, então posso dizer que morei durante um mês no Raval.
Provavelmente, muita gente não sabe onde fica o Raval. Pelo contrário, certamente muita gente saberá onde ficam "as Ramblas". Ou pensa que sabe. Pois uma Rambla há o que mais em quase todas as principais cidades da Catalunya. O que as pessoas chamam de "as Ramblas" é a La Rambla, que é a Rambla do centro de Barcelona.
Chegados ao centro de Barcelona, já na Rambla, ao lado direito, ver-se-á o Raval. Ver-se-á aquele pedaço de carne tão exótico aos olhos dos Portugueses. São os Kebabs, meus caros. Algo árabe que, de tão islamizada que anda a Europa, já é parte constituinte do velho continente. Ver-se-á também aquele pedaço de carne à venda nas esquinas ou em ruas mais refundidas. São as prostitutas. O Raval é ainda pródigo em cabeleireiros que servem de anfiteatros para conferências falocêntricas e cybers onde os emigrantes fazem video-conferências com os queridos lá longe. Ver-se-á também uma Rambla. Pois ao Raval também se lhe permite ter uma Rambla; nem mais, nem menos do que a Rambla Raval.
Mas esse é o Raval profundo. Tal como em todo o lado, nas ruas que circundam respira-se o bairro, mas também se respira a cidade. Eu morei nos arredores do Raval. Primeiro num hostel, depois noutro hostel, novamente no primeiro dos hostels e, finalmente, numa casa dividida com um Paquistanês, uma Italiana e um Japonês, necessariamente por esta hierárquica ordem.
Uma casa multicultural, num bairro multicultural. O idioma instituído era o Espanhol, mas, para o fútil intuito da coloquial comunicação, tanto faz, bem poderia ser o Inglês. Desde que chegasse para a converseta e assegurasse que ninguém chegasse a ninguém. Que é afinal o que se quer do idioma, caso contrário falaríamos em verso e a comunicação inter-cabeças seria uma utopia ainda mais distante, para não dizer inalcançável na nossa mundana miopia. 
Eu cá prefiro e sou apologista do linguarajar banal. Poupa-nos a opinistas, a pessoas que pensam estar na posse de conhecimento para discorrer sobre todo e qualquer tópico.
Nesse sentido, bons tempos foram estes, em que o Raval e a realidade se resumiam a um mero ruído. Que entrava por um ouvido e saía, tão direitinho quanto distorcido,  por outro ouvido.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Micro-cidades dentro doutras Cidades IV

Restaurante Italiano em Little Italy - New York, Vitor Vicente, Abril de 2011

Em New York, única cidade que é indigna de ser tratada por outro nome senão o nome próprio, em New York, repito, passei a perceber um pouco melhor como são as demais cidades e como funciona o mundo em geral.
New York (New York, New York) é o modelo do mundo, a cidade-capital-estado que dita a conduta humana, a cultura mundana e que controla até a contra-cultura.
Todos nós, de certo modo, nascemos e crescemos em New York. Mesmo que essa informação não esteja mencionada no nosso cartão de cidadão.
É irrelevante. Em qualquer caso, New York já chegou a nós. Fosse nos bonecos com que dividimos o berço, fosse nos filmes que, aos domingos à tarde, os graúdos nos forçavam a ver.
Chegados à idade adulta, isto é a idade da independência, em que se pensa pela própria cabeça - que é uma idade a que muito boa gente não chega nunca, por eternamente ficar-se pela idade das trevas - podemos, por fim, escolher como e com quem existir. Por exemplo, temos o livro arbítrio de continuar a ir ao cinema e poder-se sentar na sala de cinema e/ou na cafeteria anexa. Podemos deixar de ter televisão, podemos ter televisão e não ver televisão e, ao cometer esse crasso crime social, deixarmos de ter assento (lugar cativo, nem pensar) na sociedade. Se cometemos ese crime por muito tempo, se se torna um crime contínuo, deixamos de ter com quem sair e, se insistimos em sair, deixamos de ter assunto para discutir à mesa.
Aqui no Purgatório, dei por mim a pensar que deve ter sido esse o meu crime social. Pelo menos, o meu principal crime social. Nunca me foi apresentado "O Padrinho". Nem o primeiro, nem o segundo, nem nenhum das sequelas. Os Padrinhos, pelos vistos, são mais que as mães. E, como qualquer produto americano, quer se seja fã, quer não, toda a gente ouviu falar a respeito dele.
Eu também ouvi falar, mas pouco sei sobre os Padrinhos. Suficientemente pouco para demorar muito a perceber que estive em Little Italy, em New York. Mas o suficiente para perceber que foi em New York que se criou o conceito de Little XXX. Não se tivessem, hoje em dia, todas as cidades tornado-se também "Little New York".  

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Micro-cidades dentro doutras Cidades III

Polícia em Chinatown - New York, Vitor Vicente, Abril de 2011

Chinatown chegou até mim enquanto procurava um hotel em New York. Chegou-me como uma autêntica pechincha, sem me prometer muitos mais mundos e fundos, do que um quarto onde pernoitar e um bairro onde evitar voltar tarde e a más horas da noite. Por prudência e gestão de fundos, acabei por ficar em Harlem. À semelhança do nosso lugar de origem, também o lugar onde nos alojamos interfere e muito na percepção que colhemos das cidades. 
Na altura, ainda não tinha estado na Ásia. Com as excepções de Eretz (Israel) e da Rússia Oriental que, para o puzzle do império Chinês, não são peças para aqui chamadas.
Se New York é o mundo, a Alemanha a Europa, então a China é a Ásia. Ou seja, a China é o que de América ainda a Ásia ainda consegue manter-se alheia. Penso que Singapura e o bairros britânicos de Hong Kong são onde menos cheira a China. Até porque a Ásia é sobretudo um apelo aos sentidos, com destaque para o olfato, depois a visão e a audição e, por último, o paladar e o tato.
Nunca antes tinha estado na Ásia profunda, nessa Ásia com que muito sonhava. Chinatown era um bairro bagunçado. A Ásia, apercebi-me disso depois, era sinónimo de bagunça. Não como a baguncinha brasileira. Se há bagunça parecida na América do Sul, só pode ser no Paraguai. Penso isso porque, ainda hoje, tenho presente o cheiro (lá está, o cheiro) da Ciudad del Este.
Cheirava a China. Chamamos de China a Coreia, chamamos de China o próprio imponente e imperial Japão. Tudo corrido a China. Todo o negócio da Ásia é tido por negócio da China. 
Chinatown nem tinha só chineses, tinha asiáticos de toda a forma e feitio. O bazar chinês, nesse aspeto, é tão abarcador como New York. 
Mas New York é um mundo. New York é New York, o que é o mesmo que dizer que New York é mais que um mundo. New York é o mundo e o mundo é New York.

domingo, 1 de setembro de 2013

Com a de-vida distância XIII

O Atlântico a banhar a Patagónia - Argentina, Vitor Vicente, Janeiro de 2010

Cumpridos os meus deveres diários, a pouco de mais de um quarto de hora do fim do turno, lembrei-me de ligar o rádio para ouvir o relato do sorteio da Champions League. Como ainda era cedo para o dito, em vez do relato ou algo afim, acabei por dar de orelhas com António Variações.
De phones nos ouvidos, olhei em redor e dei (agora) de caras com bocas brancas e Europeias a conversar. Não sei se estavam a comentar quem poderia jogar contra quem na Champions League. Só sei que não parecia empresa fácil explicar-lhes as letras de António Variações.
Primeiro, porque os génios jamais foram entendidos muita gente. Segundo, porque as letras de Variações são intraduzíveis para a baça alma Europeia. Não quero com isto chamar de cretinos os meus queridos colegas. Quero apenas dizer que são insensíveis a algo que lhes está mais além: a alma Atlântica. 
(Em vez de bater nos colegas, prefiro dar porrada a quem se presta a alguns cultos. Refiro-me aos casos em que o objeto de culto, se tivesse oportunidade, cuspiria na cara daqueles que precisamente lhe prestam culto. Aliás, se há algo que atesta o genio proscrito, acho que passa por ser idolatrado a posteriori por imbecis a quem teria vontade de espezinhar que nem vermes).
Mas deixemos os vermes e os mortos. Fiquemos com o intraduzível Variações. Que, na mais otimista das hipóteses, chegaria aos espírito dalguns Espanhóis mais espertos e atentos. (Nem mesmo assim, os Portugueses reconheceriam os Ibéricos como nossos irmãos e continuariam a considerar os Ingleses como os únicos capazes de nos compreender pela idiota razão de serem Ingleses).
Seja, deixemos que assim seja, como assim tem sido há séculos. Por mim, tudo bem, desde que não se tenha de de sair do escritório, para, via Variações, levitar além dos Europeus e voltar a Portugal. Quedo. Tanto mais mudo, menos surdo. Com a de-vida distância. 

sábado, 31 de agosto de 2013

Micro-cidades dentro doutras Cidades II

Irish Jewish Museum - Dublin, Vitor Vicente, Maio de 2012

Em 2007, enquanto estava no encalço dos passos de Franz Kafka, fui parar ao bairro Judeu de Praga. Onde, vá lá perceber-se porquê, me senti em casa.
No ano anterior, dessa feita em Dublin, tinha-me perdido de mim próprio e fui parar ao Portobello, outrora o bairro Judeu cá (na altura, lá) do sítio. Estava perdido, tão perdido, a ponto de confundir um canal com o Liffey, que é rio que divide Dublin em dois.
Alguns anos depois, já em 2010, mudei-me para esta cidade, que, não me canso de dizer, foi o chamariz para me pôr a andar para fora de Portugal. Após o capitulo na Catalunya, acabei por chegar cá com um atraso de três anos e oito meses, a que ainda se devem acrescentar alguns dias e a cuja culpa se deve atribuir ao, tão célebre quanto anónimo, vulcão na Islândia que pôs em terra quase todo um continente. No meu caso, ainda me obrigou a vir por terra de Barcelona até ao Èire e, perdidas as primeiras noites de hotel que prudentemente reservara, a confiar um qualquer hotel ao taxista que me levou do Porto (pois, eu cheguei de Ferry!) de Dublin para a cidade.
O hotel era, por sinal, no Portobello. Se Dublin era um destino, o Portobello então era a terra prometida. Da Little Jerusalem da primeira metade do século transato, pouco mais sobram que um par de placas e um museu. Tudo o resto são sombras de judiaria que só vê quem por judiarias já andou noutras anteriores almas.
Assim são as sobras e as sombras da Little Jerualém. Que também são visiveis para quem leu "Little Jerusalém", um relato na primeira pessoa de Nick Harris, que não é escritor nem pretende ser nada que se pareça e simplesmente nos dá um retrato da rotina do dia-à-dia da judiaria. Aliás, de ilustre este senhor apenas também algum parentesco com os donos da afamada paderia Bretzel que, já me esquecia, juntamente com o Museu são as únicas judiarias que fazem parte da judria de hoje em dia.
De resto, como já é praxe, onde antes haviam Judeus ensimesmados, foi criada uma comunidade Muçulmana. Uma crescente comunidade Muçulmana. Que ao contrário da Judia, cuja tendência era crescer sem sair de si própria, parece querer assenhorar-se desde espaço, como quem o habita desde sempre. Quando este espaço é de todos. Desde os mortos para quem o bairro dá paz e guarida como memória, passando por aqueles que por cá fazem vidinha. Até aos que do bairro cuidam com o carinho de quem trata de uma criança. 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Dito e Feito em Waterford

Reginald`s Tower - Waterford, Vitor Vicente, Agosto de 2013

Após quase três anos em que poucas foram as vezes em que estive sem viajar durante mais de três meses, tal período (três meses) de jejum só me poderia conduzir ao entusiasmo pateta do rato do campo que, pela primeira vez, tem a oportunidade de se embasbacar com as luzes da cidade. (O acontecimento inverso, isto é a estreia do rato da cidade em reduto rural, também tem o seu quê de pacóvio. Porque o entusiasmo de uma viagem, que é afinal onde queremos chegar, mede-se pelo quão longe nos leva o espírito).
No meu presente caso, ainda acresce que a viagem não me levaria mais além do país em que vivo (que, como não é o mesmo que o país onde nasci, pesa e dá outro impacto) e nem sequer me daria ao luxo de poder adormecer e acordar noutro lugar que não o colchão  de todos os dias (sensação que, diga-se em abono do apanágio da viagem, é importante praxe para nos apercebermos de que estamos longe).
Estamos então perante um entusiasmo que já disse pateta e que ainda adjetivarei de patente. Só por poder ir a Waterford fazer um frete. Pateta e patente, porém engenhoso, ao ponto de, agora pela minha primeira vez, conseguir conetar o telemóvel a uma rede sem fios de Internet.
Sem fios, eis como me senti assim que dei por feito o frete que, afinal de contas, fora o mote para Waterford. Tinha então uma tarde pela frente que, após o tal período de três meses de jejum e enjoo por não me encontrar a bordo, me parecia todo o tempo deste mundo e do outro.
Depressa entendi que existem ruas em Waterford que podiam muito bem existir em Dublin. Quem diz e escreve em Dublin, diz em qualquer parte da Irlanda. Esta ilha é o império do homogéneo. Imita-se a si própria com uma precisão invejável. 
É certo que, por um lado, em Waterford há Pubs a pontapé e fatos de treino andantes que se movem através da infindável mama do Welfare. Por outro, o facto de não ser uma cidade (cidade, segundo os standards cá do sítio) do interiorzão da Irlanda e estar a poucos metros de um cais de onde se parte e de onde se chega do Velho Continente, possibilita-lhe ter uma par de praças que jamais se podiam imaginar em Dublin, uma livraria de quatro andares com cafetaria incluída e um leve charme Francês.
Convém não esquecer que os Normandos andaram por cá, assim como os Vikings também deixaram os seus vestígios. É olhar para os passeios públicos de estilo medieval e ver que por aqui há muito desaproveitado potencial.
É a Irlanda. O Èire não engana. Por mais influência Viking, Polaca (esta, claro mais recente) e Normanda, por mais alto que tenha sido o sonho do tigre Celta, o tempo das ilhas é o tempo das ilhas. Tanto mais perfeito, quanto incompleto. Tanto mais incompleto, quanto imenso. Demorado e arrastado.
Waterford, assim dito e anunciado como no sul de uma ilha de que quiseram fazer um país, até parece tratar-se de uma constelação de resorts. Este ano o Verão foi um verdadeiro Verão. Muitos dos que viveram este Verão, provavelmente não verão um Verão como este no Èire. A Irlanda não está suficientemente a Sul para essa sucessão de solarengos verões. Só está suficientemente a Sul para se poder permitir a ser desgrenhada e desregrada. Em tudo o resto, a ilha está exposta aos caprichos do clima (e conduta) Celtas.  

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Micro-cidades dentro doutras Cidades I


Temple Bar - Dublin, Vitor Vicente, Janeiro de 2013

Existem muitas coisas nas cidades. Entre estas coisas, existem também cidades dentro das cidades. Assim sendo, a ser inventado um medidor de cidades, caber-lhe-á consagrar como cidade mais completa aquela em que mais couberem outras cidades. 
A primeira vez que vi uma cidade crescer dentro doutra cidade foi em Dublin. Era uma cidade que crescia com o crepúsculo - com um crepúsculo lento que tomava conta do céu e, como uma cortina, parecia chamar todos os participantes para aquilo a que se que haviam comprometido a tomar parte.
Tudo isto tomava parte no Temple Bar e nas ruas em redor deste bairro - um bairro que, durante o dia, parece semi-adormecido e que desperta da letargia à medida que se vai apagando a luz e tendo na mira virar a cidade do avesso.
No fundo, e isso era algo que ignorava na época, essa trata-se da missão dos bares e dos bairros de bares: estilhaçar o assertivo espetáculo diurno e, de seguida, anunciar a rainha da noite - que nunca será nenhum de nós, por, à semelhança da morte, também a própria noite ser soberana e servir-se das pessoas como mera paisagem que lhe asseguram a sucessão no trono e lhe reconhecem o reinado.
Mas não chamemos nem a morte, nem a noite. Nem o Temple Bar que, hoje em dia, me parece o palácio da inautenticidade. Para alguns, isto é para os que ainda cá estarão, amanhã há mais. O vulgo conformado dirá que amanhã é outro dia, sem se lembrar que ontem foi outro dia e que esse dia não volta mais. As cidades continuarão a crescer no seio das cidades, sem sombra de respeito pelo branco voto de silêncio imposto aos cemitérios.
Por aqui me fico. Sem mais querer acrescentar que assisti ao desdobramento de Dublin em dois, quando corria (na altura, parecia correr devagar) o ano de dois mil e sete, e eu estava nesta cidade com o estatuto de visitante (de viajante, por mais que acumule cartões de residente, sempre). 
Se me permitem mais um parágrafo, na época, pelo capricho dos verdes anos vinte, não se fizeram fotografias. No entanto, há textos escritos que não são para aqui chamados. Senão para dizer que, em vez destes, o que segue é uma sequência de Micro-cidades dentro doutras Cidades.  

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Diáspora de Dublin XXXI

Vende-se: Igreja  - Dublin, Vitor Vicente, Maio de 2012

Durante alguns anos, despendi o meu tempo de leituras entre os clássicos e os contemporâneos. Com o passar do tempo, continuo a ler os clássicos., já só leio os poucos contemporâneos que parecem ter centelha de clássicos, e também livros de divulgação que antes, meio por snobismo, meio por pressa, não achavam estatuto na minha estante, nem se estendiam na minha mesa de cabeceira (sim, eu leio e escrevo deitado e, sobretudo,na cama).
Hoje, como disse, dedico um bom tempo aos livros de divulgação. Ultimamente, tenho-me focado em divulgação de história. Não em livros que rebatem nos acontecimentos-chave da história da espécie humana. Antes no passado recente de pessoas, cujos retratos ou relatos, ainda muito têm em comum com as cidades do presente calendário.
No que toca a Dublin, entre outras coisas que não vêm agora aqui ao caso, fiquei a saber que um dos maiores bares da cidade - que  também é um dos poucos que não se trata de um Pub tradicional - foi, em tempos, uma estação de comboios. Para ser sincero, não me espanta. Sempre pensei ter-se tratado de um teatro ou de uma estação de comboios. Primeiro, por saber que, naquela área e em tempos, houve uma estação de comboios. Segundo, por toda a estação de comboios ter o seu quê de teatro e vice-versa.
Isto ilustra sobremaneira o atabalhoado aproveitamento urbanístico de Dublin. Posso adicionar outros dois exemplos: um Pub chamado "The Church" que, como o próprio nome indica, era uma igreja e uma outra igreja aqui do bairro que se tornou num complexo de apartamentos. Foram-se os fiéis, ficaram as pessoas e as pints. Estes são só dois exemplos, mas há mais pela cidade fora. Só aqui no Portobello está outra igreja para venda, com tabuleta e preço, como se fosse uma vivenda.  
Que vai ser do futuro, quando estivermos embalados num saco ou fechados numa caixa? Que construirão por cima do nosso cadáver? Por cima de que carcaças caminhamos? Continuará a Irlanda a improvisar neste mirabolante modelo de organização urbanística que nem se lembrou de ligar duas linhas de metro de superfície? Essa façanha é um clássico. Já se podiam aceitar apostas (atenção Paddy Power!) para adivinhar qual é a geração que vai ser contemporânea do grande acontecimento irlandês que vai ser ligar duas (as únicas existentes, assinale-se) linhas de metro de superfície que se encontram separadas. 

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Variações sobre Velhas Viagens XVIII

Anoitecer na marina de Tórshavn - Ilhas Faroé, Vitor Vicente, Abril de 2013

As Ilhas Faroé são, simultaneamente, umas ilhas inócuas e fodidas. Enquanto lá estamos, parece que não se passa nada. Quando na verdade, quer o queiramos, quer não, o tempo passa. Isto é, o nosso tempo. Pois o tempo das Ilhas Faroé, tal como o de todas as ilhas, é um tempo imenso e infinito. 
E o pior é que, findo o tempo que nos coube nas Faroé, há lugares no mundo que nos hipotecam. Esses lugares, é certo, existem. Como possibilidades tão plausíveis como o Pub ao virar da esquina. Mas não nos apetece. Em poucas palavras e muito simplesmente, ao pé das Faroé não são nada.
É então preciso dar um tempo preciso ao tempo. Precisamente, o tempo para que tudo volte a ser precioso. Até ao dia em que não tenhamos presente mais do que uma memória desfocada das Faroé e possamos voltar a desfrutar do que, no momento, relegamos para a segunda divisão dos verdes arquipélagos.
Até lá, as Faroé serão sempre o lugar tão fantástico como as cidades que só se podem ler nos livros ou só se passam na cabeça daqueles que olham o mundo à luz da lombada. 
No fundo, as Faroé ficarão no  álbum da memória futura, lado a lado com as fábulas e contos feéricos da infância. Senão o mesmo que o próprio período da infância.
Se as Faroé podem aspirar a ser algo figurativo, podemos dizer que são um farol que ofusca todos os oceanos daqueles que já não sabe para onde se virar, nem tem para onde viajar. Um farol  que nos diz que somos pouco mais que nada e tão frágeis como um náufrago. Que nos recorda que todos os regressos são irreais.
Após as Faroé - novamente, à semelhança da infância - só nos resta ir em frente. Não há modo de mandar parar o mundo. Às escuras, avançamos. Sem que, alguma vez, tenhamos pedido para começar, nem nos tenham explicado que tudo isto teria um fim.  

domingo, 18 de agosto de 2013

Com a de-vida distância XII

A Velha e a Vassoura - Goa, Vitor Vicente, Dezembro de 2011

Durante algum tempo, um dos meus melhores amigos só queria conhecer miúdas através da Intenet. Isto ainda antes do Facebook, aliás o meu amigo, entretanto, passados todos estes anos, nem se deixou contagiar pela febre facebuquiana. É que, já agora, convém esclarecer os mais novos e alguns mentecaptos que primeiro veio a Internet e só depois o Facebook. Quem diz a Internet, diz o sexo virtual. Cuja prática remonta aos tempos do Msn que, hoje, assim dito, parece do tempo do Ms-Dos.  
Houve então um tempo em que o meu amigo fazia amizades virtuais. Exclusivamente. Chegou a conhecer algumas pessoas, no tanto que é dado a conhecer alguém quando se está a cara a cara com alguém. Conheceu de tudo. Desde taradas que faziam strip através da web cam enquanto o meu amigo, do outro lado da web cam, exibia uma nota atrás da outra, até outro tipo de taradas que fodiam com ele, também em frente da web cam, enquanto outro tipo, também do lado de lá da web cam, assistia à coisa. No meio destas mulheres e destas web cam todas, houve, claro está, também casos de criaturas sem grandes caraterísticas. Mas destas, por serem despidas disso mesmo, não rezará a história com nada digno de grande  registo, senão a de pertencerem a uma massa anónima e sem côr. 
A que vem aqui dar o mote à história é uma senhora que dizia (digitalmente) ter quarenta anos e que o meu amigo foi conhecer ao centro da cidade. O encontrou, tal como o encanto, durou pouco. Na verdade, nem começou. Cito o meu amigo: "Conheces aquele tipo de mulher que tem quarenta anos e tem quarenta anos mesmo?". Respondi: "Conheço, sim". Explicou: "Ela era desse tipo. Quando chegou ao lugar onde tínhamos combinado, perguntou-me se eu era eu, e eu disse que não e fui-me embora. Ela era ela. E tinha quarenta anos e quarenta anos mesmo". 
O meu amigo vai também embora desta história. 
O que quero dizer com esta história é que existem pessoas que têm e aparentam ter quarenta anos, ou qualquer que seja a idade que tenham e aparentam ter. Quanto mais velhas sejam, mais tendem a parecer ter a idade que têm. São pessoas que vivem rente à realidade, que respeitam e respiram a realidade como se nada mais houvesse em redor. Que, ano após ano, como carneiros, continuam a cumprir o calendário. Religiosamente. Existem porque envelhecem e envelhecem porque existem. Enfim, envilecem.
Costumo ver essas pessoas quando vou a Portugal. Porque em Portugal permanecem, a apodrecer e a  hipotecar as possibilidades de partir, incluindo o mais importante que é a possibilidade de partir de si próprias. Mas este fenómeno não é  património do nosso país. Este é um fenómeno humano, de escala tão universal como a estupidez. Os portugueses, naqueles acessos absurdos de auto-estima, é que tendem a pensar que há coisas, sobretudo as piores coisas, que só se passam em Portugal. Claro que temos as nossas coisas. Mas isso é fruto de acidentes e incidentes históricos, geográficos e até (ó pedras duras, que precisai de ser polidas!) geológicos.
E essa é demasiada areia para esta camioneta e que se quer leve. Que quer viver longe por crer que longe ser o nome do único lugar onde se pode viver e manter jovem. Os anos aqui, neste lugar sem nome, são-nos anos bobos, de brincadeira. Até quando nos aburguesarmos não deixamos de o fazer de modo atabalhoado, um tanto ou quanto adolescente. É só mais uma experiência, mais uma metamorfose desta condição sem ciência, nem obrigação. O único imperativo é jamais nos rendermos à realidade, a última e única válida resistência é a do espírito. Assim, refratários, participamos do movimento do mundo, por estarmos tão integrados no mundo como no infinito. Assim, mau grado a morte, existimos, rimos e resistimos separados dos vivos com a de-vida distância. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Bilhete Inter-Países

Bilhete CP Lisboa-Madrid-Barcelona - Dublin, Vitor Vicente, Agosto de 2012

Este não é um bilhete banal, nem mais um bilhete entre outros tantos bilhetes. É o bilhete dos bilhetes e está guardado no baú dos bilhetes que não tenho.
Este bilhete é, ele próprio, um baú. Ou, pelo menos, uma gaveta a quem se confiam glórias, segredos e vergonhosas confissões.
Este bilhete não se trata de um bilhete qualquer. Com este bilhete vai-se a mais destinos do que nele estão escritos. Ainda que ocultos, aqui constam todos os vinte países (incluíndo o país de onde parti e onde voltei de visita, mas já lá vamos) em que estive enquanto vivi na Catalunya, mas também os outros vinte e dois onde fui, alguns anos depois, já a morar em Dublin.
Este é um bilhete com bilhetes dentro. Um bilhete desdobrável. Como o mapa do infinito. É um bilhete maneiras invisível porque dá a ilusão que mostra tudo quando, na verdade, mostra menos de metade.
Este é um bilhete em que até a origem do seu itinerário se tornou um destino. No sentido em que, cumprido o dito trajeto, a respetiva origem também se tornou um destino viajável. 
Este é um bilhete que transforma e que transtorna. Que transfigura pontos de partida e acaba com sentimentos de chegada. É certo que é um bilhete de caminhos de ferro, mas tem o seu quê de fluvial e aéreo. É um bilhete com direito à entrada no estuário das estrelas. No fundo, é um bilhete toda a terra e para contemplar o céu por completo.
Este é um bilhete-mestre. Um bilhete que abre outros bilhetes. Que arromba países que, quando se está em Portugal e por Portugal se permanece, parecem só existir nas enciclopédias. E que, mesmo para aqueles que os podem visitar sem deixar de viver em Portugal, parecem fazer parte da Volta ao Mundo em 80 Enciclopédias.
Este bilhete é-me mais do que um bilhete. É-me uma espécie de segunda via do cartão de cidadão, do próprio passaporte. É-me parte da pele, é-me e ser-me-á sempre o papel em que escrevo. Inclusive, deste ambulante apontamento. 

domingo, 11 de agosto de 2013

Com a de-vida distância XI

Cadeira e mesa vazias - Barcelona, Vitor Vicente, Agosto de 2011

Nas antevésperas de completar sete anos fora de Portugal, pergunto-me ainda por alguns porquês. Pergunto-me pelo porquê daqueles que partiram e pelo porquê daqueles que não partiram nunca.
Pergunto-me sem que a realidade me dê qualquer resposta. Ainda assim, autista, mouco aos ouvidos mudos do mundo, prossigo. 
(Para quem acha obra inútil e quem não continuar este absurdo caminho, fica o aviso para ficar por este capítulo).
Primeiro, pergunto-me por mim. Onde teria estado eu durante estes anos, se nunca tivesse partido? Quando pergunto onde, pergunto pelo paradeiro pensamento. Pois é do irrequieto poiso dos pensamentos que este questionar se ocupa. Que pensaria eu do estrangeiro? Tomaria-o como um espaço tão inacessível quanto as estrelas? Ou, simplesmente, não lhe faria caso, sem estar consciente de que viveria de costas voltadas para o mundo? 
Mas, por caso - e esta é, para quem não deu conta, a segunda pergunta - todos aqueles que partiram terão abraçado mais mundo que a pátria que os pariu? Já aqui (acho) referi os que partiram sem nunca terem partido, os profundamente provincianos que se disfarçam de toda-a-terra. Gente para quem a diáspora é um desperdício e que continua a viver o seu dia-à-dia como se nunca tivesse conhecido outra casa que não a sua, ou outra que à sua se pareça.
Depois, há ainda os que partem como quem procura. Que farejam a fastidiosa imbricação dos factos como se fosse feita de material feérico, como se pudesse ser cenário de uma fábula sem tempo, nem espaço. Estes partem como existem: sem explicações. Estes, sim, que são a falsa partida em pessoa. Nunca partiram porque nunca estiveram em lado algum. Se permanecem, é por pura preguiça e um certo sentido de inércia a que não é alheia a inocência e uma certa tendência para se irmanar ao infinito. Se querem coser-se a uma cidade, dali ninguém os tira ou dá ordem de saída. Na verdade, bem podem viver num cem-número de cidades que sempre serão um sem-número de sítios. Desta estirpe, entre a espécie, nunca me foi apresentado um exemplo. Só existem nos livros e nos ecrans das salas de cinema, em suma nos nobres salões dos sonhos que não são parte do património de nenhum século, nem da - desculpem se desiludo alguém - Paris do Século XIX. 
(E um pequeno parêntesis para os que, independentemente de terem partido pouco, muito ou mais ou menos, jamais terem partido de si próprios. Os que, num par de palavras, nunca se confrontaram com a sua consciência. Já era hora de a pôrem em causa, de lhe tirarem as calças e de a chamar de desavergonhada. Derrubado do altar, poder-se-á então ver os alicerces em que se fixa o ambulante circo das humanas convicções. O quão frágil é tudo o que se fixa: basta meio dia de dinamite e estilhaçam-se as convicções de toda uma vida, sendo que este processo é mais demorado quanto mais cretina tem sido a dita vida.)
Assim continuo a acompanhar este cais de pseudo-partidas e inconcretizadas chegadas. Jamais entendi o vai e vem dos vivos, quanto mais o dos mortos. A ambos assisto - hoje em dia, mais para o aterrado do que em posição de expetativa -com a de-vida distância. 

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Diáspora de Dublin XXX

Stephens Green Shopping Centre - Dublin, Vitor Vicente, Janeiro de 2013

Com certeza que haverá muito cretino que ainda não compreendeu que o mundo é redondo e que continua a crer que o Planeta Terra é um retângulo mais-que-perfeito. Ou, pelo menos, que aprendeu que assim não é mas que aje como se assim fosse. Como se o mundo fosse forçado a ser uma cópia do seu quadrado quotidiano. Do tipo, as quatro faces do quadrado têm que ser iguais em todo o lado. Ou é assim, ou - rica ressalva - haverá algo de errado. 
Errado, quer dizer, que se trata de algo que não reflete a sua realidade. Estamos a falar dos antropocêntricos, no mínimo dos autocêntricos. Para quem o universo existe enquanto extensão do seu umbigo. Gente que, hoje em dia, se dá ao luxo de se espantar com o facto de ainda haver quem não espelhe o que de melhor se passe no mais perfeito dos quadrados - a saber, o seu.  
Dito isto, neste tom, até dá para ser levado a crer que esta gente leu Leibniz. Não leu. Não leram nada. Quando muito, nos tempos do liceu e da universidade, leram resumos para tirar positiva. De resto, tudo o que leram, resumos e pouco mais, leram sempre através da lupa míope que é o seu quadrado entendimento. Sem serem sequer capazes de associar alguma coisa a - ao quê?, perguntam nesta altura do campeonato- a alguma outra coisa. 
Era aqui que eu queria chegar: às pessoas que, aqui em Dublin, assumem que a cidade é uma mistura do bairro onde moram e do bairro onde trabalham. Isto quando não se tratam do mesmo bairro. Pois, para muitas pessoas, a vivência da cidade cinge-se a trabalhar e sair com pessoas que conheceram no trabalho. 
Depois há os que fazem férias onde o pessoal é diferente. Oh que diferente, que exótico. Toca de tirar foto, publicar no Facebook, de preferência lado a lado com os locais, como se essas gentes fossem jibóias. 
No fundo, somos todos paradigmas. Uns do que é normal e natural, outros do curioso que parte à procura da essência humana nos pobres coitados que se contentam com uma côdea de pão. Preconceitos, temos todos. Ou então não poderíamos ter opiniões. O problema é haver mais opiniões do que pessoas. Na verdade, o problema divide-se em dois e multiplica-se no número de pessoas que personificam esse problema: pessoas com opiniões a mais do que o diminuto inteleto lhes devia permitir e pessoas completamente desprovidas de opinião própria ou baseada naquilo que ouviu por aí. 
Logística nunca foi o forte da espécie. Ainda está para vir o dia em que a distribuição seja justa em Dublin e no mundo inteiro. 

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Diáspora de Dublin XXIX

Autocarro de uma excursão pelo County Clare, Vitor Vicente, Março de 2011

Tenho então um quotidiano andante. O poder nas pernas, nos pés. O privilégio de não depender dos transportes, nem de estar refém do estado das estradas ou das vicissitudes dos veículos desta vida para poder fazer da minha vida ainda mais a minha vida. 
Pois pertenço a uma multidão de andarilhos anónimos  que não se conhecem, que nunca foram, nem almejam- de tão assustadiços e ensimesmados - vir a ser apresentados. Que, à semelhança dos caprichos dos génios, querem ser singulares e não aceitam ajuntamentos, nem constituir parte de grupos.
Posso cruzar-me com os mesmos caminhantes todos os dias, à mesma hora, sempre no mesmo semáforo, mas nenhum de nós vai se lembrar do outro no dia seguinte. É um pacto perfeito, sem que nada, nem ninguém tenha de mover uma palha por isso. 
Já dos passageiros que, todos os dias e antigamente, apanhavam o mesmo autocarro que eu, desses lembro-me muito bem. Como se, todos os dias do tempo que atiro para longe ao chamar de antigamente, tivesse sido ontem.
Lembro-me que alguns deles já diziam olá entre eles e entre dentes e que outros, embaraçados, viravam os focinhos para o lado ou atiravam-nos para o chão. Lembro-me - seria impossível não me lembrar - de um maluco que, como todos os malucos em qualquer parte do mundo, ia sempre sentado no banco de trás (no caso Irlandês, do andar de cima do autocarro) e que levava sempre sacos de plásticos. Além de se sentar sempre no banco de trás e de trazer sempre sacos de plástico, este maluco também falava sozinho e dizia sempre as mesmas coisas e sempre quando passávamos junto às mesmas paragens. A saber, "For Fuck´s  Sake. For Fuck´s Sake. She doesn`t care. No, she doesn`t care. She`s a fucking bitch!". 
Era claro que nem eu, nem nenhum dos passageiros frequentes deste autocarro, se sentava perto dele. Era tão claro como perceber que quem se sentava perto dele não nos acompanhava no autocarro, diariamente, desde a sombria Segunda até à ansiada Sexta.
À Sexta, tínhamos todos o semblante aberto e o ambiente era tão descontraído que mais parecia um autocarro para a praia. Como se Sexta fosse sinónimo de férias. Até era: férias de dois dias. Mais dias houvera e andar nesse autocarro seria uma verdadeira viagem. Assim não sendo, esta crónica está votada a não pertencer às Variações sobre Velhas Viagens. Antes a dar o corpo à andante Diáspora de Dublin

domingo, 30 de junho de 2013

Diáspora de XXVIII


Temple Bar - Dublin, Vitor Vicente, Outubro de 2010

A língua faz os modos como vemos o mundo e como o mundo nos vê. Até para quem tende a andar calado ou a fazer beicinho, a língua define-nos a configuração da cara. A nossa expressão, ou a sua ausência, é o nosso eu exterior.
É um espetáculo. Os expatriados, a falar com a língua, com as mãos, com o corpo todo, são um espetáculo. O meu espetáculo de eleição - digo eu daqui da plateia, meu lugar preferencial - é ver como as suas origens vêm ao de cima, como que saltam à flor da pele, como que sobem à superfície, depois de os desgraçados linguarajar num idioma e respetivos gestos que não lhes são obviamente próprios. 
Dois expatriados, caso estejam num país de língua Inglesa ou em viagem por uma terra que não é a de nenhum deles, instintivamente, como animais que se encontram subitamente na selva, são forçados a comunicar em Easy English. Que, traduzindo para miúdos, é uma espécie de sub-idioma que se cola facilmente aos lábios e é composto por palavras e intenções ao alcance dos símios. Não há aqui lugar à poesia, a não ser à poesia que está sempre presente quando duas criaturas distintas logram entender-se.
Passe-se da poesia para a paixão. Há casais de latinos que logram - preparem-se para passar para o plano do pasmo e da imaginação -  apaixonar-se. Daqui da plateia, volto a dizer: é um espetáculo vê-los a dizer uma coisa com a boca e dizer outra com as mãos, com o corpo todo. Coisa tão hilariante como ainda haver metade da humanidade com paciência para aturar a outra metade da humanidade. 
Depois há ainda os que acham chic expressar-se em Easy English - digo falar, pois não é propriedade destas gentes o poder de se expressar, por mais que alguns deles tenham gosto em emitir opiniões sobre assuntos sociais ou em elogiar as vantagens de praticar Yoga. Os Portugueses, digo eu ainda da plateia por ter o privilégio de designar os Portugueses por Portugueses, acham-se especiais por serem menos obviamente Portugueses a falar Easy English do que a vizinhança do Sul do continente. Mal sabem eles que, por votarem a letra h ao mutismo e não terem um tom de voz de quem fala ao altifalante como os nuestros amigos da Andaluzia, os Portugueses parecem-se aos Polacos - inclusivé a canalha de Polacos, pseudo-arraçados, que tanto gostam de se fazer passar por Alemães. Enfim, como os Espanhóis dizem o H de maneira gritante e o tuguinha não, o tuguinha nada disso, vale-lhes a velha máxima que mais vale não fazer do que fazer mal. 
Eu, que já adotei a plateia como habitat natural, é que já não digo nada e deixo toda a gente dizer, desdizer ou deixar de dizer. Não me cabe a mim ser o corretor das gramáticas das gentes, nem pôr tento na ponta da língua a quem ganhar o juízo é uma tarefa que, em nome das audiências, se vai agendando para mais tarde. 
Façam mas é o favor de continuar o espetáculo. Quem está na plateia não quer que chamem a si mais atenções. 

sábado, 29 de junho de 2013

Diáspora de Dublin XXVII

Cartazes pró-Catalunya lado a lado com Quadros da Catalunya clássica - Barcelona
Vitor Vicente, Setembro de 2012

Existem expatriados a quem o estatuto de expatriado merece ser questionado, senão mesmo posto em cheque. Refiro-me ao tipo de expatriado que se parece a um pedaço evadido de sua pátria.
São pessoas que, por mais anos que passem num país que não aquele onde vieram ao mundo, jamais deixarão de fazer parte da mobília nativa. Pelo simplório motivo de continuarem a comungar uma das  caraterísticas particularmente partilhadas pelos seus compadres. 
A alguns destes expatriados, por mais que se esmerem, nem se coloca a clásica e milenar questão: de onde vim? Basta abrirem a boca e já sai um fio de noodles ou de spaghetti. Outros nem é preciso abrir a boca e já sabemos com que modos, ou falta deles, se sentam à mesa. Há também quem seja traído pela roupa, pelo corte de cabelo - penso em suspensórios ou em riscos ao meio, respetivamente e pouco respeituosamente. Nesta galeria global, sobra ainda espaço para o tipo de expatriado que, quanto mais tenta escamotear a sua condição, mais se aproxima do expatriado escancarado. Sem esquecer, nesta era do cosmopolita de baixo custo, os ingleses e seus descendentes, para quem, em qualquer parte do mundo, o Pub é palco para toda a obra. 
Perante esta panóplia, aqui em Dublin ou noutra cidade qualquer, o que ainda me apraz é encontrar alguém que não renega as suas raízes enquanto, com a mesma naturalidade, colhe conhecimentos e condutas e que os contrapõe às que, até então, tinha vindo a assumir como acertadas e até definitivas. Alguém que se foi fazendo homezinho, sem ter que forçar tiques, nem trejeitos identitários, seja para integrar-se entre expatriados ou no seio dos nativos, seja para afirmar os valores do berço - espetáculo que, aos olhos de gente graúda, bem vivida e bem viajada, se assemelha a uma curiosa quermesse lá das berças. 
Alguém assim é autêntico. Alguém que se sabe assim, pode dar e viver assente na harmonia, na humildade e no humanismo.  

terça-feira, 25 de junho de 2013

Diáspora de Dublin XXVI

Caminho pedonal paralelo ao canal do Portobello, Vitor Vicente, Junho de 2013

Todos os dias ando durante um hora. Meia hora a patear até ao escritório, meia hora a caminhar para casa. Não me canso com isso. Pelo contrário, estou extremamente contente e, não fossem as poucas vezes que chove copiosamente (por estas bandas, em oposição ao que pensam os portugueses, caem frequentemente alguns aguaceiros que quase nunca são dignos de serem chamados de chuva), a juntar ao exercício diário de andarilho, poderia agradecer diariamente a D-us pela oportunidade de cumprir tal caminhada.
Os invejosos, que são praticamente os mesmos que os portugueses que se rejubilam por saber que por cá está a chover, os invejosos acham que estou a ser irónico, que "lá está ele a desconversar, a não falar a sério." Afirmam, do alto da sua solarenga arrogância, que aqui o desgraçado não tem é dinheiro para "pagar o passe" que "lá na Irlanda o transporte é caro, tudo é caríssimo naquela cidade". (Alguns, mais audazes nos dizeres, ainda acrescentam que "Dublin deve ser como Londres. Paga-se cinco libras para percorrer meia dúzia de estações de metro".)
Sem nenhum ressentimento, sem necessidade de me render, reconheço parcial razão aos invejosos. Lá do alto da sua solarenga e cegueta arrogância, eles adivinharam: os transportes são mesmo caros em Dublin. Que tudo seja caro, já é um exagero de quem nunca deu voltas ao mundo senão sentado no sofá enquanto via os périplos dos brancóides no Travel Channel. O que por aqui há é muita coisa que fica aquém do preço que custa.
O que também me custa é que uma pretensa capital como esta tenha transportes terceiro-mundistas. Como se podem construir duas linhas de metro de superfície (subterrâneo, como há em Londres e no Continente, aqui não há)  sem uma paragem comum e assim se obrigue o pobre do passageiro a fazer a conexão pelo próprio pé? Interfaces na Irlanda são inexistentes. De terceiro mundo - ou  devo dizer saídos doutro mundo? - são também a maioria dos médicos. Pobres diabos que, face à displicência dos dubliners com a sua própria saúde, não dedicassem boa parte do seu expediente a serem verdadeiros vendedores de baixas, há muito que teriam ido à falência. (Acreditem: os médicos cobram por consulta, com ou sem baixa por  baixo da mesa, qualquer coisa como cinquenta e tal euros!)
Antes que fiquemos doentes e não tenhamos quem nos acude, deixemos os médicos. Voltemos a apanhar o tema dos tranportes. No caso, podemos apanhar o autocarro e ir até onde aqui o desgraçado trabalha. Só temos que andar dez minutos, esperar um tempo indeterminado pelo dito, desesperar durante, no mínimo, outros quinze para que consigamos atravessar o centro da cidade (quase todos os autocarros vão pelo centro e ficar atascado é aceitável, tão aceitável como haver uma paragem de cem em cem metros,  uma das quais serve de cenário para se aguardar passivamente que um motorista venha substituir o outro) e finalmente chegar à nossa paragem e daí andar os derradeiros dez minutos até ao escritório. Tudo isto somado dá muitas dores de cabeça, de costas e de coluna e de sei lá mais o quê - dá certamente mais da meia-hora que, a penantes, se tarda da porta de casa até à secretária onde um tipo se senta durante sete horas.
Por isso, abençoo e digo: bem-ditos pés, bem-dita terra. Que me permite ir a pé, lado a lado com outras pessoas que não dependem de nada, nem de ninguém, senão dos próprios pés. Pessoas que se podem sentir senhoras do seu nariz. Que podem trabalhar por conta de outrém, ter um horário a honrar. Que podem não ter o o mundo a seus pés. Mas têm a cidade nos seus pés. Uma cidade que se torna sua, só por ter o poder nos seus pés. 

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Diáspora de Dublin XXV


Guinness e Rascunho num bar da Baia de Howth - Dublin, Vitor Vicente, Janeiro de 2012

Chamem-me xamã, chamem-me cabalista, chamem-me o que quiserem, mas para mim o mundo é uma extensão do nosso estado de espírito, um prolongamento daquilo que os ingleses, tão dados à economia, reduzem à palavra mood. A mood, que também se pode traduzir por alma ou ânimo, a mood é que nos mede o mundo. 
Pelo menos, pode medir o quanto de mundo permitimos que nos perturbe. Quanto mais mundanos, mais mandados. Em contrapartida, os autistas são aqueles a quem a mood está ausente de mundo e se sobrepôe às manifestações da mundaniedade.
O mutismo é a manifestação-mor, enquanto manifestação nenhuma, do autismo. Quer dizer, o autismo deliberado. Que, rezam as histórias, era o meu modo de habitar o mundo enquanto animal de berço e em todo e qualquer dos habitats ermos da minha infância. Quem vinha ver-me (sobretudo, quando se tratavam dos vizinhos) e me esperava ouvir falar as palavras que já havia falado, ficava votado a um espetáculo silencioso - e que, quanto mais silencioso, mais ensurdecedor. É que, dizem, do fundo de um berço onde eu me aninhava como no fundo dum poço, eu só abria a boca quando bem me apetecia. Quando muito, abria a boca para sorrir,para me rir das pessoas que me vinham ver e me queriam ouvir falar - para me rir das pessoas com todos os dentes que ainda não tinha na boca. Alguns anos mais tarde, na adolescência, não voltei a falar aos vizinhos e alegava "nunca me terem sido apresentados e conhecer de vista como se conhece o carteiro". Hoje em dia, quando volto a ver os velhos vizinhos cada vez mais velhos, digo bom dia e boa tarde com o mesmo sorriso escarninho que, nos anos idos da infância, recebia, do fundo do poço disfarçado de berço, aqueles que me queriam ver e ouvir falar.
Voltando à adolescência, agora nos avançados da adolescência, em pleno liceu, fluência em idiomas nunca foi o meu forte. Pelo irrefutável facto que implicava falar. A minha glória era mais nas matérias de Filosofia e de História.
Na Faculdade, falei e bebi muito. Mandei tanta gente à fava, meti-me em simpósios com a postura daquele que, à falta de faca ou navalha, simplesmente avacalha. 
Já enquanto expatriado, vi-me em Espanha com um nível de Inglês de trazer por casa e um nível de Portuñol que daria para dar umas direções a algum Paquito perdido no outro lado da Península que não este para onde me mudara. No meu primeiro ano na Catalunya, pouco mais que fiz que apurar o ouvido para distinguir o que era Castelhano do que era Catalão. Trabalho vão - tudo entrou-me por um tímpano e escapou pelo outro. Só mais tarde, ao me darem trabalho no Aeroporto, uma onda de alegria rebentou-me na ponta da língua e ensinou-me Espanhol instantâneo. Meio que por milage, meio que por magia.
O Inglês, desde que estou na Irlanda, ilha que tão bem trata o Inglês em sentido literário e em sentido literal, tem sofrido as oscilações própria de quem, desde que cá chegou, tem se questionado por que cá tem estado. Comecei por andar de língua desenvolta, depois enrolei-a como quem se fecha num casulo. Depressa Dublin, à imagem e semelhança de Barcelona, fez-se trampolim para outras terras. Nessa aero-época, fui especialmente fluente nas vésperas das viagens e nos dias em que se regressa das ditas e em que se continua a estar mais para lá do que para cá. Fluência assim, em que se fala pelos cotovelos e não há dor nos ditos por não nos preocuparmos com os feitos dos outros, só quando sinto que a Ilha Esmeralda fica com feições de Ilha Eterna. Aí falo e aconteço, não falo nem deixo acontecer, e partilho o meu autismo ambulante com o alheio numa aliança tão transbordante de alegria que até consigo conectar o volátil e leve mundo das fantasias e das fábulas com o penoso mundo dos factos e dos fardos.
A mesma fluência que vale para a fala, vale também para escrita. Tendo a escrever mais e - falta-me a modéstia -a escrever melhor, quando estou feliz. Escrever é-me uma espécie de celebração calada. 

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Via Frankfurt X

Canal Portobello - Dublin, Vitor Vicente, Junho de 2013

Há duas semanas e mais alguns dias que deixei de ser oficial de Frankfurt à distância.
Contudo, parece-me que tudo se passou noutra cidade, noutro tempo, numa realidade tão distante quanto outra reencarnação. Mas o mais estranho, diria mesmo mais espetacular, é que a rotina antiga continua lá, nada nem ninguém saíram do sítio de sempre. Nem o aeroporto de Frankfurt, nem o escritório onde eu estava em Frankfurt estando fisicamente distante.
Não guardo remorsos por ter deixado as funções de oficial de Frankfurt à distância. Tive experiências que, de outro modo, nunca teria tido oportunidade de ter durante toda uma vida. E tudo o que é inalcançável e irrepetível não tem preço ou se regateia, não tem troco, nem se troca por o que quer que seja.
A não ser por - e com isto ainda quero dizer que não me arrependo de ter sido oficial de Frankfurt à distância - por um quotidiano andante. Quanto mais andante, mais independente. Sem ninguém no teu pé ou cosido ao teu ouvido. Com poucas pressas, poucas pressões, poucos derivados da pesada palavra pessoa. 
A tudo isso, rendida e grata, a cabeça semi curva-se e agradece.
Agradece também os vinte e dois países que, em trinta meses de oficial de Frankfurt à distância, consituíram  um tão incansável quanto inimaginável périplo. Agradece, sim, mas ciente de que, antes ainda de ser staff dos ditos, já deambulara por quatro mãos cheias de nações. Trocado para números, vinte. 
O ritmo, agora, é outro. Viajo como vivo, viajo porque respiro. Não descarto que, algum dia, possa partir para outro poiso, nem  a cada tanto dar-me ao gozo nómada de adormecer nalgum lugar longe de onde acordo diariamente. 
Entretanto, tenho hoje menos margem de manobra para me mover no espaço. Em contrapartida, disponho de mais tempo para espairecer o espírito. É baseada nestas nuances que me cabe encontrar o equilíbrio entre o que disponho de espaço e de tempo e, assente nesses alicerces, simplesmente, existir.  
 

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