segunda-feira, 24 de junho de 2013

Diáspora de Dublin XXV


Guinness e Rascunho num bar da Baia de Howth - Dublin, Vitor Vicente, Janeiro de 2012

Chamem-me xamã, chamem-me cabalista, chamem-me o que quiserem, mas para mim o mundo é uma extensão do nosso estado de espírito, um prolongamento daquilo que os ingleses, tão dados à economia, reduzem à palavra mood. A mood, que também se pode traduzir por alma ou ânimo, a mood é que nos mede o mundo. 
Pelo menos, pode medir o quanto de mundo permitimos que nos perturbe. Quanto mais mundanos, mais mandados. Em contrapartida, os autistas são aqueles a quem a mood está ausente de mundo e se sobrepôe às manifestações da mundaniedade.
O mutismo é a manifestação-mor, enquanto manifestação nenhuma, do autismo. Quer dizer, o autismo deliberado. Que, rezam as histórias, era o meu modo de habitar o mundo enquanto animal de berço e em todo e qualquer dos habitats ermos da minha infância. Quem vinha ver-me (sobretudo, quando se tratavam dos vizinhos) e me esperava ouvir falar as palavras que já havia falado, ficava votado a um espetáculo silencioso - e que, quanto mais silencioso, mais ensurdecedor. É que, dizem, do fundo de um berço onde eu me aninhava como no fundo dum poço, eu só abria a boca quando bem me apetecia. Quando muito, abria a boca para sorrir,para me rir das pessoas que me vinham ver e me queriam ouvir falar - para me rir das pessoas com todos os dentes que ainda não tinha na boca. Alguns anos mais tarde, na adolescência, não voltei a falar aos vizinhos e alegava "nunca me terem sido apresentados e conhecer de vista como se conhece o carteiro". Hoje em dia, quando volto a ver os velhos vizinhos cada vez mais velhos, digo bom dia e boa tarde com o mesmo sorriso escarninho que, nos anos idos da infância, recebia, do fundo do poço disfarçado de berço, aqueles que me queriam ver e ouvir falar.
Voltando à adolescência, agora nos avançados da adolescência, em pleno liceu, fluência em idiomas nunca foi o meu forte. Pelo irrefutável facto que implicava falar. A minha glória era mais nas matérias de Filosofia e de História.
Na Faculdade, falei e bebi muito. Mandei tanta gente à fava, meti-me em simpósios com a postura daquele que, à falta de faca ou navalha, simplesmente avacalha. 
Já enquanto expatriado, vi-me em Espanha com um nível de Inglês de trazer por casa e um nível de Portuñol que daria para dar umas direções a algum Paquito perdido no outro lado da Península que não este para onde me mudara. No meu primeiro ano na Catalunya, pouco mais que fiz que apurar o ouvido para distinguir o que era Castelhano do que era Catalão. Trabalho vão - tudo entrou-me por um tímpano e escapou pelo outro. Só mais tarde, ao me darem trabalho no Aeroporto, uma onda de alegria rebentou-me na ponta da língua e ensinou-me Espanhol instantâneo. Meio que por milage, meio que por magia.
O Inglês, desde que estou na Irlanda, ilha que tão bem trata o Inglês em sentido literário e em sentido literal, tem sofrido as oscilações própria de quem, desde que cá chegou, tem se questionado por que cá tem estado. Comecei por andar de língua desenvolta, depois enrolei-a como quem se fecha num casulo. Depressa Dublin, à imagem e semelhança de Barcelona, fez-se trampolim para outras terras. Nessa aero-época, fui especialmente fluente nas vésperas das viagens e nos dias em que se regressa das ditas e em que se continua a estar mais para lá do que para cá. Fluência assim, em que se fala pelos cotovelos e não há dor nos ditos por não nos preocuparmos com os feitos dos outros, só quando sinto que a Ilha Esmeralda fica com feições de Ilha Eterna. Aí falo e aconteço, não falo nem deixo acontecer, e partilho o meu autismo ambulante com o alheio numa aliança tão transbordante de alegria que até consigo conectar o volátil e leve mundo das fantasias e das fábulas com o penoso mundo dos factos e dos fardos.
A mesma fluência que vale para a fala, vale também para escrita. Tendo a escrever mais e - falta-me a modéstia -a escrever melhor, quando estou feliz. Escrever é-me uma espécie de celebração calada. 

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