Europa Point - Gibraltar, Vitor Vicente, Março de 2012
Miguel levanta uma das mãos do volante:
- Vês aquela rocha? Enorme?
- Espera. Tenho que pôr os óculos – apresso-me a responder, já habituado a precisar de algum tipo de auxílio para poder ver o que todos podem ver.
- Não precisas, homem. É enorme – reforça o meu amigo.
Já de óculos postos, dou de caras com o rochedo. Dá para entender que está longe , que é pela imponência que dá a ilusão que está perto.
- É já em Gibraltar?
É já em Gibraltar. É já um terço do tamanho do Gibraltar. É o cartão de visita da cidade. Dá-nos as boas-vindas, fica-nos na retina. Grava-se no cérebro com o poder de um verdadeiro monumento de pedra.
Dizem que os Ingleses construíram toda uma cidade lá dentro, a fim de se protegerem de possíveis ataques bélicos. Esta rocha é como que uma trincheira de guerra. Dela diz-se – como pouco se sabe, muito se diz, tal é o mistério – que veio de África. Uma rocha anfíbia, portanto. À prova de bala, à prova de água. Para ficar na memória. À prova da morte, portanto.
É o abono de família dos Gibraltinos. Para Inglês ver e turista visitar. Nela vivem macacos. Muitos macacos.
Mais tarde, à boleia de outro Miguel, este marido da minha amiga Elisabete, também de mãos momentaneamente fora do volante, explicam-me:
- Os macacos são sagrados. Se algum se deita na estrada, pára o trânsito. Mas é que pára mesmo. Alto aí que há um macaco na estrada. Ai de quem atropelá-lo. Atropelar um macaco, aqui em Gibraltar, é apanhar uma alta multa.
Os macacos são divertidos, mas demasiado afins aos humanos para o meu misantropo gosto. Gosto mais das gaivotas. Do coro de gaivotas que, como uma orquestra, anunciam a aurora, entoam cânticos portuários num espaço entre o mar e o céu que só elas conhecem. Elas e aqueles que, como eu, avistam África e sentem um apelo para partir. Não para África. Mas pelo desconhecido, para um lugar lá longe, uma terra sem nome. Onde o anonimato é ainda alcançável.
Não posso ver um navio, um cruzeiro, um qualquer barco colossal, sem que me dê vontade de esconder num biombo, num qualquer contentor. E embarcar, escondido, entre a carga.
Resta-me ficar em terra, imaginar que tipo de carga se transporta. Se praticam contrabando, em que cais aportam, como se embebedam, e um infinito marítimo etc.
Voltando à terra. Nesse dia, enquanto terminava a festa de Purim, o Miguel levou-me ao bairro judeu de Gibraltar. Nunca vi tanta presença judaica por metro quadrado. Ao final da tarde, já com Elisabete e os dois Miguéis (tal pai, tal filho), bebemos café numa rua verde, em homenagem aos primeiros irlandeses que chegaram à cidade.
Já a cidade se cobria com um manto negro e pontilhado por estrelas quando, em consonância com a identidade cosmopolita de Gibraltar, jantamos num restaurante gerido por um indiano, cuja cozinha era sobretudo argentina e os garçons ibéricos e ingleses.
Gibraltar dá-nos a ideia de que estamos fora do mundo e que todos os povos do mundo, alguma vez na vida, por um breve momento, vieram cá desaguar. Que o mundo é mundo civilizado desde o dia que é como um cais. Que só cresce quando acolhe e invade, se auto-aceita. Que só assim se multiplica.
Belíssima lição.
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