domingo, 30 de junho de 2013

Diáspora de XXVIII


Temple Bar - Dublin, Vitor Vicente, Outubro de 2010

A língua faz os modos como vemos o mundo e como o mundo nos vê. Até para quem tende a andar calado ou a fazer beicinho, a língua define-nos a configuração da cara. A nossa expressão, ou a sua ausência, é o nosso eu exterior.
É um espetáculo. Os expatriados, a falar com a língua, com as mãos, com o corpo todo, são um espetáculo. O meu espetáculo de eleição - digo eu daqui da plateia, meu lugar preferencial - é ver como as suas origens vêm ao de cima, como que saltam à flor da pele, como que sobem à superfície, depois de os desgraçados linguarajar num idioma e respetivos gestos que não lhes são obviamente próprios. 
Dois expatriados, caso estejam num país de língua Inglesa ou em viagem por uma terra que não é a de nenhum deles, instintivamente, como animais que se encontram subitamente na selva, são forçados a comunicar em Easy English. Que, traduzindo para miúdos, é uma espécie de sub-idioma que se cola facilmente aos lábios e é composto por palavras e intenções ao alcance dos símios. Não há aqui lugar à poesia, a não ser à poesia que está sempre presente quando duas criaturas distintas logram entender-se.
Passe-se da poesia para a paixão. Há casais de latinos que logram - preparem-se para passar para o plano do pasmo e da imaginação -  apaixonar-se. Daqui da plateia, volto a dizer: é um espetáculo vê-los a dizer uma coisa com a boca e dizer outra com as mãos, com o corpo todo. Coisa tão hilariante como ainda haver metade da humanidade com paciência para aturar a outra metade da humanidade. 
Depois há ainda os que acham chic expressar-se em Easy English - digo falar, pois não é propriedade destas gentes o poder de se expressar, por mais que alguns deles tenham gosto em emitir opiniões sobre assuntos sociais ou em elogiar as vantagens de praticar Yoga. Os Portugueses, digo eu ainda da plateia por ter o privilégio de designar os Portugueses por Portugueses, acham-se especiais por serem menos obviamente Portugueses a falar Easy English do que a vizinhança do Sul do continente. Mal sabem eles que, por votarem a letra h ao mutismo e não terem um tom de voz de quem fala ao altifalante como os nuestros amigos da Andaluzia, os Portugueses parecem-se aos Polacos - inclusivé a canalha de Polacos, pseudo-arraçados, que tanto gostam de se fazer passar por Alemães. Enfim, como os Espanhóis dizem o H de maneira gritante e o tuguinha não, o tuguinha nada disso, vale-lhes a velha máxima que mais vale não fazer do que fazer mal. 
Eu, que já adotei a plateia como habitat natural, é que já não digo nada e deixo toda a gente dizer, desdizer ou deixar de dizer. Não me cabe a mim ser o corretor das gramáticas das gentes, nem pôr tento na ponta da língua a quem ganhar o juízo é uma tarefa que, em nome das audiências, se vai agendando para mais tarde. 
Façam mas é o favor de continuar o espetáculo. Quem está na plateia não quer que chamem a si mais atenções. 

sábado, 29 de junho de 2013

Diáspora de Dublin XXVII

Cartazes pró-Catalunya lado a lado com Quadros da Catalunya clássica - Barcelona
Vitor Vicente, Setembro de 2012

Existem expatriados a quem o estatuto de expatriado merece ser questionado, senão mesmo posto em cheque. Refiro-me ao tipo de expatriado que se parece a um pedaço evadido de sua pátria.
São pessoas que, por mais anos que passem num país que não aquele onde vieram ao mundo, jamais deixarão de fazer parte da mobília nativa. Pelo simplório motivo de continuarem a comungar uma das  caraterísticas particularmente partilhadas pelos seus compadres. 
A alguns destes expatriados, por mais que se esmerem, nem se coloca a clásica e milenar questão: de onde vim? Basta abrirem a boca e já sai um fio de noodles ou de spaghetti. Outros nem é preciso abrir a boca e já sabemos com que modos, ou falta deles, se sentam à mesa. Há também quem seja traído pela roupa, pelo corte de cabelo - penso em suspensórios ou em riscos ao meio, respetivamente e pouco respeituosamente. Nesta galeria global, sobra ainda espaço para o tipo de expatriado que, quanto mais tenta escamotear a sua condição, mais se aproxima do expatriado escancarado. Sem esquecer, nesta era do cosmopolita de baixo custo, os ingleses e seus descendentes, para quem, em qualquer parte do mundo, o Pub é palco para toda a obra. 
Perante esta panóplia, aqui em Dublin ou noutra cidade qualquer, o que ainda me apraz é encontrar alguém que não renega as suas raízes enquanto, com a mesma naturalidade, colhe conhecimentos e condutas e que os contrapõe às que, até então, tinha vindo a assumir como acertadas e até definitivas. Alguém que se foi fazendo homezinho, sem ter que forçar tiques, nem trejeitos identitários, seja para integrar-se entre expatriados ou no seio dos nativos, seja para afirmar os valores do berço - espetáculo que, aos olhos de gente graúda, bem vivida e bem viajada, se assemelha a uma curiosa quermesse lá das berças. 
Alguém assim é autêntico. Alguém que se sabe assim, pode dar e viver assente na harmonia, na humildade e no humanismo.  

terça-feira, 25 de junho de 2013

Diáspora de Dublin XXVI

Caminho pedonal paralelo ao canal do Portobello, Vitor Vicente, Junho de 2013

Todos os dias ando durante um hora. Meia hora a patear até ao escritório, meia hora a caminhar para casa. Não me canso com isso. Pelo contrário, estou extremamente contente e, não fossem as poucas vezes que chove copiosamente (por estas bandas, em oposição ao que pensam os portugueses, caem frequentemente alguns aguaceiros que quase nunca são dignos de serem chamados de chuva), a juntar ao exercício diário de andarilho, poderia agradecer diariamente a D-us pela oportunidade de cumprir tal caminhada.
Os invejosos, que são praticamente os mesmos que os portugueses que se rejubilam por saber que por cá está a chover, os invejosos acham que estou a ser irónico, que "lá está ele a desconversar, a não falar a sério." Afirmam, do alto da sua solarenga arrogância, que aqui o desgraçado não tem é dinheiro para "pagar o passe" que "lá na Irlanda o transporte é caro, tudo é caríssimo naquela cidade". (Alguns, mais audazes nos dizeres, ainda acrescentam que "Dublin deve ser como Londres. Paga-se cinco libras para percorrer meia dúzia de estações de metro".)
Sem nenhum ressentimento, sem necessidade de me render, reconheço parcial razão aos invejosos. Lá do alto da sua solarenga e cegueta arrogância, eles adivinharam: os transportes são mesmo caros em Dublin. Que tudo seja caro, já é um exagero de quem nunca deu voltas ao mundo senão sentado no sofá enquanto via os périplos dos brancóides no Travel Channel. O que por aqui há é muita coisa que fica aquém do preço que custa.
O que também me custa é que uma pretensa capital como esta tenha transportes terceiro-mundistas. Como se podem construir duas linhas de metro de superfície (subterrâneo, como há em Londres e no Continente, aqui não há)  sem uma paragem comum e assim se obrigue o pobre do passageiro a fazer a conexão pelo próprio pé? Interfaces na Irlanda são inexistentes. De terceiro mundo - ou  devo dizer saídos doutro mundo? - são também a maioria dos médicos. Pobres diabos que, face à displicência dos dubliners com a sua própria saúde, não dedicassem boa parte do seu expediente a serem verdadeiros vendedores de baixas, há muito que teriam ido à falência. (Acreditem: os médicos cobram por consulta, com ou sem baixa por  baixo da mesa, qualquer coisa como cinquenta e tal euros!)
Antes que fiquemos doentes e não tenhamos quem nos acude, deixemos os médicos. Voltemos a apanhar o tema dos tranportes. No caso, podemos apanhar o autocarro e ir até onde aqui o desgraçado trabalha. Só temos que andar dez minutos, esperar um tempo indeterminado pelo dito, desesperar durante, no mínimo, outros quinze para que consigamos atravessar o centro da cidade (quase todos os autocarros vão pelo centro e ficar atascado é aceitável, tão aceitável como haver uma paragem de cem em cem metros,  uma das quais serve de cenário para se aguardar passivamente que um motorista venha substituir o outro) e finalmente chegar à nossa paragem e daí andar os derradeiros dez minutos até ao escritório. Tudo isto somado dá muitas dores de cabeça, de costas e de coluna e de sei lá mais o quê - dá certamente mais da meia-hora que, a penantes, se tarda da porta de casa até à secretária onde um tipo se senta durante sete horas.
Por isso, abençoo e digo: bem-ditos pés, bem-dita terra. Que me permite ir a pé, lado a lado com outras pessoas que não dependem de nada, nem de ninguém, senão dos próprios pés. Pessoas que se podem sentir senhoras do seu nariz. Que podem trabalhar por conta de outrém, ter um horário a honrar. Que podem não ter o o mundo a seus pés. Mas têm a cidade nos seus pés. Uma cidade que se torna sua, só por ter o poder nos seus pés. 

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Diáspora de Dublin XXV


Guinness e Rascunho num bar da Baia de Howth - Dublin, Vitor Vicente, Janeiro de 2012

Chamem-me xamã, chamem-me cabalista, chamem-me o que quiserem, mas para mim o mundo é uma extensão do nosso estado de espírito, um prolongamento daquilo que os ingleses, tão dados à economia, reduzem à palavra mood. A mood, que também se pode traduzir por alma ou ânimo, a mood é que nos mede o mundo. 
Pelo menos, pode medir o quanto de mundo permitimos que nos perturbe. Quanto mais mundanos, mais mandados. Em contrapartida, os autistas são aqueles a quem a mood está ausente de mundo e se sobrepôe às manifestações da mundaniedade.
O mutismo é a manifestação-mor, enquanto manifestação nenhuma, do autismo. Quer dizer, o autismo deliberado. Que, rezam as histórias, era o meu modo de habitar o mundo enquanto animal de berço e em todo e qualquer dos habitats ermos da minha infância. Quem vinha ver-me (sobretudo, quando se tratavam dos vizinhos) e me esperava ouvir falar as palavras que já havia falado, ficava votado a um espetáculo silencioso - e que, quanto mais silencioso, mais ensurdecedor. É que, dizem, do fundo de um berço onde eu me aninhava como no fundo dum poço, eu só abria a boca quando bem me apetecia. Quando muito, abria a boca para sorrir,para me rir das pessoas que me vinham ver e me queriam ouvir falar - para me rir das pessoas com todos os dentes que ainda não tinha na boca. Alguns anos mais tarde, na adolescência, não voltei a falar aos vizinhos e alegava "nunca me terem sido apresentados e conhecer de vista como se conhece o carteiro". Hoje em dia, quando volto a ver os velhos vizinhos cada vez mais velhos, digo bom dia e boa tarde com o mesmo sorriso escarninho que, nos anos idos da infância, recebia, do fundo do poço disfarçado de berço, aqueles que me queriam ver e ouvir falar.
Voltando à adolescência, agora nos avançados da adolescência, em pleno liceu, fluência em idiomas nunca foi o meu forte. Pelo irrefutável facto que implicava falar. A minha glória era mais nas matérias de Filosofia e de História.
Na Faculdade, falei e bebi muito. Mandei tanta gente à fava, meti-me em simpósios com a postura daquele que, à falta de faca ou navalha, simplesmente avacalha. 
Já enquanto expatriado, vi-me em Espanha com um nível de Inglês de trazer por casa e um nível de Portuñol que daria para dar umas direções a algum Paquito perdido no outro lado da Península que não este para onde me mudara. No meu primeiro ano na Catalunya, pouco mais que fiz que apurar o ouvido para distinguir o que era Castelhano do que era Catalão. Trabalho vão - tudo entrou-me por um tímpano e escapou pelo outro. Só mais tarde, ao me darem trabalho no Aeroporto, uma onda de alegria rebentou-me na ponta da língua e ensinou-me Espanhol instantâneo. Meio que por milage, meio que por magia.
O Inglês, desde que estou na Irlanda, ilha que tão bem trata o Inglês em sentido literário e em sentido literal, tem sofrido as oscilações própria de quem, desde que cá chegou, tem se questionado por que cá tem estado. Comecei por andar de língua desenvolta, depois enrolei-a como quem se fecha num casulo. Depressa Dublin, à imagem e semelhança de Barcelona, fez-se trampolim para outras terras. Nessa aero-época, fui especialmente fluente nas vésperas das viagens e nos dias em que se regressa das ditas e em que se continua a estar mais para lá do que para cá. Fluência assim, em que se fala pelos cotovelos e não há dor nos ditos por não nos preocuparmos com os feitos dos outros, só quando sinto que a Ilha Esmeralda fica com feições de Ilha Eterna. Aí falo e aconteço, não falo nem deixo acontecer, e partilho o meu autismo ambulante com o alheio numa aliança tão transbordante de alegria que até consigo conectar o volátil e leve mundo das fantasias e das fábulas com o penoso mundo dos factos e dos fardos.
A mesma fluência que vale para a fala, vale também para escrita. Tendo a escrever mais e - falta-me a modéstia -a escrever melhor, quando estou feliz. Escrever é-me uma espécie de celebração calada. 

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Via Frankfurt X

Canal Portobello - Dublin, Vitor Vicente, Junho de 2013

Há duas semanas e mais alguns dias que deixei de ser oficial de Frankfurt à distância.
Contudo, parece-me que tudo se passou noutra cidade, noutro tempo, numa realidade tão distante quanto outra reencarnação. Mas o mais estranho, diria mesmo mais espetacular, é que a rotina antiga continua lá, nada nem ninguém saíram do sítio de sempre. Nem o aeroporto de Frankfurt, nem o escritório onde eu estava em Frankfurt estando fisicamente distante.
Não guardo remorsos por ter deixado as funções de oficial de Frankfurt à distância. Tive experiências que, de outro modo, nunca teria tido oportunidade de ter durante toda uma vida. E tudo o que é inalcançável e irrepetível não tem preço ou se regateia, não tem troco, nem se troca por o que quer que seja.
A não ser por - e com isto ainda quero dizer que não me arrependo de ter sido oficial de Frankfurt à distância - por um quotidiano andante. Quanto mais andante, mais independente. Sem ninguém no teu pé ou cosido ao teu ouvido. Com poucas pressas, poucas pressões, poucos derivados da pesada palavra pessoa. 
A tudo isso, rendida e grata, a cabeça semi curva-se e agradece.
Agradece também os vinte e dois países que, em trinta meses de oficial de Frankfurt à distância, consituíram  um tão incansável quanto inimaginável périplo. Agradece, sim, mas ciente de que, antes ainda de ser staff dos ditos, já deambulara por quatro mãos cheias de nações. Trocado para números, vinte. 
O ritmo, agora, é outro. Viajo como vivo, viajo porque respiro. Não descarto que, algum dia, possa partir para outro poiso, nem  a cada tanto dar-me ao gozo nómada de adormecer nalgum lugar longe de onde acordo diariamente. 
Entretanto, tenho hoje menos margem de manobra para me mover no espaço. Em contrapartida, disponho de mais tempo para espairecer o espírito. É baseada nestas nuances que me cabe encontrar o equilíbrio entre o que disponho de espaço e de tempo e, assente nesses alicerces, simplesmente, existir.  

domingo, 16 de junho de 2013

Via Frankfurt IX

Igreja na Pedra - Helsínquia, Maio de 2013, Vitor Vicente

Sabíamos que Frankfurt, enquanto escada de ascenção às estrelas, tinha os dias contados.
Como tal, agendou-se à pressa um apressado fim de semana em Helsínquia. Naquelas condições de correria em que, há coisa de um ano atrás, fizémos da vida dois dias na Lovely Latvia.
Helsínquia, por seu lado, já sabia que era aterrar num e partir no outro dia. Se bem que, à beira do Báltico durante o mês de Maio, um dia não são dias - um dia, de tão longo e tão luminoso, são muitos dias. 
A minha carta de demissão, entretanto, já estava escrita e já fora entregue a quem cabia entregar. O relógio era agora um contra-relógio, cujos ponteiros apontavam para uma nova realidade quotidiana.
Por isso, no regresso, o aeroporto de Frankfurt acolheu-me de braços abertos. Um braço a acolher-me, outro a atirar-me para Dublin. Para que, ao mesmo tempo ficasse ciente de que o passado era um presente permanente e de que no futuro iria inaugurar a era pós-Frankfurt. 
Assim fiz. Assim, entre dentes, assumimos e, pelos ares, arrastámos a palavra fim. 

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Via Frankfurt VIII

Menorah à entrada do Aeroporto Ben Gurion - Tel Aviv, Vitor Vicente, Abril de 2013

Voltas ao mundo, dizia eu na última crónica. Mas não só, começo eu por dizer nesta. Os oficiais de Frankfurt à distância podiam tirar partido de tirar bilhete por percurso. Quer isto dizer, por cada percurso é cobrado um certo montante. Independentemente do que tende a fazer disparar uma típica tarifa, a saber o facto de se partir para um destino e voltar doutro, de se fazer uma pausa de mais de um dia numa qualquer cidade pelo caminho, ou simplesmente ter a vantagem de, a qualquer momento, poder mudar de ideias e solicitar o reembolso total de todos os voos. 
É todo um jogo de combinações em que se podiam conceber os itinerários mais inimagináveis.
Como eu já me imaginava a deixar de ser oficial à distância de Frankfurt, elaborei uma rota que tinha como  primeiro destino as Ilha Faroé e segundo Israel. Sempre com Frankfurt pelo meio, e o melhor: com Business Class para os trajetos longos. 
Quem podia imaginar que tal jornada, ir até às Faroé e voltar de Israel, nas supracitadas condições, poder-me-ia custa pouco mais de cento e tal contos de reis? Quem podia imaginar que, algum dia, eu estaria a escrever acerca de ir às Faroé e a Israel na mesma viagem?  Quem poderia imaginar que eu, algum dia, estaria a escrever com uma caneta de um hotel faroês, numa esplanada de um Pub de Dublin 4? Quem poderia imaginar que se podia desfrutar na Irlanda de uma sexta-feira solarenga, tão solarenga que nem a Smithwicks que eu bebia, nesse dia, podia sobreviver ao calor? 
Ninguém. Nem naqueles momentos mortos dos aeroportos ou naqueles momentos mais expasperantes do expediente em que nos imaginamos em todas as ilhas do Pacífico. Nem em Frankfurt, antes de embarcar para Tel Aviv e ir pela primeira terceira vez a Israel. 
Donde, alguns dias depois, voltei para Dublin. Desta vez para, finalmente, deixar de ser oficial à distância de Frankfurt.  

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Via Frankfurt VII

A caminho do Aeroporto de Incheon - Seoul, Vitor Vicente, Dezembro de 2012

Existem experiências que fazem sentido num certo período da vida. Algumas delas, como percorrer a Europa num Inter Rail ou atirar-se aos setes ventos e aos ares da Ásia por um par de meses, ficaram-me pendentes. Poderei ainda fazê-lo, mas com a agravante que o cumpri tarde e que a principal piada vai passar por isso mesmo, por ainda ter tido fôlego para curtir algo tardiamente. 
O mesmo vale para dar a volta ao mundo, à custa de meia-dúzia de mantimentos e de uns rendimentos intermitentes e obtidos à custa de um outro biscate disfarçado de trabalho.
Se bem que, para ser muito sincero, nunca consegui encarar com seriedade essa brincadeira de me desfazer do poiso, nunca me seduziu sobremaneira. Sou um bicho de hábitos, de rotinas e rituais. Sou até quadrado no meu quotidiano. Sou um chato e dou graças ao Senhor por ir ainda havendo quem me consiga aturar. 
Daí que decidi, juntamente com quem tem o condão de me aturar, dar uma volta ao mundo à minha burguesa maneira, isto é com duas paragens: uma em Vancouver, outra em Seoul, como se estas cidades fossem vizinhas e de uma para outra se pudesse ir sentado num comboio suburbano. 
Vancouver e Seoul nem são para esta crónica chamadas. Só para dizer que, como sempre, foi de Frankfurt que demos o salto para chegar à costa oeste do Canadá e foi também em Frankfurt que,enfim, fizémos uma pausa após voar da capital da Coreia do Sul.
Sempre cientes de que  Frankfurt está aqui para nos fazer chegar à frente. Para nos fazer crer que o mundo parece maior e parece menor do que quando estamos parados, que vai parecendo menor à medida que nos movemos - mas também vai parecendo maior por percebermos que, por mais que nos movamos, ficar-nos-à sempre uma parcela de mundo pendente.
Todas as voltas do mundo passavam inevitavelmente por Frankfurt. Seja como ponte para partir para longe, seja como pausa antes de voltar ao poiso. 

domingo, 9 de junho de 2013

Via Frankfurt VI

Centro financeiro de Frankfurt, Vitor Vicente, Janeiro de 2012

Lembro-me de, certo dia, ter lido numa certa e pretensa crónica de viagem que ir a uma cidade não é a mesma coisa que ir ao aeroporto que serve essa cidade. Lembro-me que primeiro imaginei uns quantos eucaliptos, a seguir já era eu uns desses eucaliptos e depois  me perguntava porque me abatiam a mim e aos meus semelhantes para se erguerem estantes e publicarem revistas com frases tão fabulosas como essa que os meus incrédulos olhos acabaram de ler. 
Já refeito da ideia de ser um eucalipto abatido, podia então começar este parágrafo e dizer que ir a Frankfurt é diferente do que ir ao aeroporto de Frankfurt. Podia ir em frente com a palermice e dizer que acompanhar meu pai e minha mãe no aeroporto de Frankfurt foi uma espécie de recuo à infância. 
Podia, pois podia. Para o bem dos eucaliptos e em nome da ecologia em geral, vou parar por aqui.
Para frisar que Frankfurt fez parte do inesquecível itinerário de uma mão cheia (cinco!) de países que visitei, durante dez dias, na companhia de meu pai e de minha mãe. 
Foi uma viagem plena. Perfeita.
Logo em Frankfurt, enquanto esperava pelo voo que vinha de Lisboa, fui tomado por uma febre de ansiedade que nunca haverá medicina tropical que consiga, algum dia, inventar a cura. Queria não só mostrar aos meus pais a cidade de Frankfurt, como o mundo que é o aeroporto de Frankfurt. Esse mundo onde desfilam todos os tipos de semblantes e trajes, onde os tapetes rolantes parecem elevar-nos até às estrelas, numa mistura de tapetes persas e tapetes vermelhos.
No regresso, quando me despedi de meu pai e de minha mãe junto à porta de embarque para Lisboa, foi como se não estivéssemos mais no aeroporto de Frankfurt, mas no próprio aeroporto da Portela. Tal como todas as vezes que parto de Portugal em direção a Dublin, também não foi em Frankfurt que fomos capazes de aprender e de dizer a palavra adeus.  

sábado, 8 de junho de 2013

Via Frankfurt V

Casamento em Jaipur para o qual não fui convidado, Vitor Vicente, Novembro de 2011

Ir à Índia era algo que, agora que era oficial à distância de Frankfurt, já não era inimaginável. Já imaginar que iria de viagem na companhia doutros oficiais, no caso dois franceses, jamais me passara pela cabeça. Na verdade,  ir à Índia acompanhado ou a qualquer outro lado, sempre me pareceu irreal. Mais depressa me vejo a ir sozinho às Índias deste mundo e do outro do que ir com quem que seja ao café (em dublinês diria pub) da esquina.
Como devem calcular, nunca concordei (nunca fui de concordar) com a ideia de que três cabeças pensam melhor que uma. Estou até convencido de que uma cabeça iluminada está sujeita a ser decapitada, quando posta em confronto com cabeças ocas. Não quero com isto reclamar possuir uma cabeça iluminada. Quero apenas deixar claro que foi às escuras que as ideias para a Índia se imiscuíram, se amontoaram, e assim o plano inicial acabou algo atabalhoado, mais feito de atalhos e de retalhos do que de programas e de prioridades.
Muito havia para contar sobre a ida à Índia, na companhia de dois franceses, um dos quais de traços indianos e que era confundido com os locais a toda a hora.
Mas o foco que nos toca, nesta hora de restrospetiva, é Frankfurt. (Sobre o fiasco que foi a Índia, já por aqui barafustei que baste.) 
Chegámos a meio da manhã ao aeroporto de Frankfurt. Durante o tempo de espera (uma mão cheia de chatas horas) para o voo com destino a  Deli, fomos reabastecer o estômago no Starbucks do hall de desembarques. No meu caso, socorri-me de um scone sêco, que é como se querem os scones e quem como eu nunca conseguiu desertar do deserto, e um capuccino que, tivesse eu a arrogância anacrónica dos italianos que ainda não entranharam a derrocada do império romano, teria deixado muito a desejar. Já os franceses, claro que marfaram croissants, depois de apontar para as sandochas cheias de molhos e merdas que designaram de iguaria para irlandeses.
Na volta, já não de Deli, mas vindos de Bombaim, só deu tempo para que eu e o francês francesíssimo mudássemos de avião e seguíssimos viagem de volta para Dublin. Já o francês índico foi acabar as férias com a família, para Paris. 
O melhor de tudo isto (Índias, scones de Frankfurt, franceses) foi ter voado, tanto na ida como no regresso, em Business Class. Banquete a bordo, cognac e champagne à discrição, dormir e só acordar para dizer que não querìamos comer mais nada, não.  A comida na Índia  também era excelente. Uma viagem menos para os olhos, mais para a barriga. Uma viagem para testar o estômago. Para o lembrar que há muito boa gente que trava uma luta permanete para mater a fome, antes que a fome os mate. 

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Via Frankfurt IV


Anúncio da Nike com Cristiano Ronaldo - Macau, Vitor Vicente, Setembro de 2011

Se por um lado os bilhetes para os Oficiais de Frankfurt estavam sujeitos à disponibilidade de lugares, por outro eram muito baratos. Mais baratos ainda eram - quando  comparados com o preço de venda ao público - os bilhetes em Business Class. Podia-se também dar o caso - pode acontecer muita coisa em viagem, sobretudo se se viaja com bilhete staff - de se ter bilhetes em económica e, por esta classe se encontrar cheia, receber-se um upgrade por cortesia para Business. Ou o contrário, como foi o caso em questão.
Vamos descer à terra, pois é em terra que acabei por ficar. O voo para Hong Kong estava completamente lotado. No embarque, os colegas aconselharam-me a tentar ir via Munique. 
E lá fiz eu a ponta aérea alemã, estendido ao comprido na fila da saída de emergência, enquanto roía uns amendoins e as unhas que não tenho. 
Em Munique, tal como em Montreal, tive que esperar até à ultima. Esperei sentado, ao lado de outro stand by, que era namorado de uma hospedeira da United Airlines, que tinha vindo dos States para Singapura, com o objetico de assistir a uma prova de Fórmula 1 e que ia tentar usar Hong Kong como escala para o destino final. Era normal o pessoal stand by confraternizar cinicamente junto às portas de embarque, a fim de fazer perguntas-chaves (para que companhia trabalhas? há quantos anos? és piloto, cabin crew ou quê?) e assim averiguar quem estava à frente de quem em caso de escassez de lugares. 
Como eu era oficial de Frankfurt, ainda que à distância, acabei por entrar primeiro que o meu colega. 
Dentro do avião, já quase a aterrar, reencontrei-o e trocámos aquele sorriso cúmplice que, traduzido em palavras, era algo como "conseguimos que este pessoal, entre celebrações toscas do October Fest, nos desse um lugarzinho a bordo".
Muita coisa acontece a quem viaja com um bilhete patrocinado pelo aerofício.
Muita coisa se sonha. Muito sonhei eu enquanto marcava e remarcava bilhetes para aqui e para ali. Muita coisa sonhei nos períodos mortos do expediente. 
A Ásia era agora a porta aberta para um sonho imenso. Após ter estado na Ásia, o mundo nunca mais me foi o mesmo, a noção de nação nunca voltou ao sítio. 
Só ficou Frankfurt. À espera que eu dividisse os meus dias por Hong Kong, Macau e China, à espera que   eu só aceitasse voltar de viagem, se me fosse permitido começar a ver da próxima viagem. 

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Via Frankfurt III


Centro da cidade de Frankfurt, Vitor Vicente, Abril de 2011

A minha primeira viagem enquanto oficial de Frankfut à distância foi a New York. Antes de ver o mundo, quis conhecer a cidade que serve de modelo ao mundo inteiro, incluindo aquelas cidades-contra, que se constroem à imagem e dessemelhança,numa palavra, às avessas, das modas americanas. 
Apanhei um voo direto de Dublin. Não tive problema algum para passar a alfândega americana. No caso, bastava passar a alfândega ainda do lado de cá do Atlântico, antes ainda de chegar à América, em pleno aeroporto de Dublin. Tanto assim que, ao aterrar no aeroporto JFK, os passageiros vindos da Irlanda só precisam de levantar as malas no terminal de voos domésticos. Como se, em vez de Dublin, tivessem partido de Dallas ou de Detroit.
Mais chato foi passar o controlo policial do aeroporto de Montreal. Demorou quase tanto tempo quanto demorara o voo de New York até ao Quebec. Ainda me lembro de um passageiro americano que se queixava disso e se queixou também disto e também daquilo durante o voo, que todo ele era queixume o tempo todo. Um daqueles americanos que eu - que considero comportamento de anta o dos anti-americanos primários - considero obtusos e quadrados, americanos até ao absurdo.
Estivesse eu pouco acostumado a viajar com bilhetes staff (leigos, leiam bilhetes stand by que custam tuta e meia e que só se traduzem em embarque quando há algum lugar vago) e muito teria refilado por, ainda em Montreal, ter esperado até à última para me darem o cartão de embarque para Frankfurt. Onde, depois de dez horas de voo, não entrei na primeira partida para Dublin. O que me custou dez horas extra de viagem, agora de espera pelo voo seguinte para a capital da Irlanda.
E lá fui eu a Frankfurt. Que não é propriamente a cidade dos sonhos, mas a cidade onde se consegue sonhar com todos os sítios. Parei um pouco na praça principal, entrei na Catedral. Em Frankfurt, enfim, fiz uma pausa para respirar fundo o ar continental.
E entranhar que ir da Europa para a Irlanda e vice-versa parecia-se a um voo inter-continental. 

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Via Frankfurt II


Shabbat em Jerusalém, Vitor Vicente, Setembro de 2010

First time in Frankfurt, I mean, in Frankfurt Airport...foi...longa história.
Foram as minhas primeira férias, desde que começara a trabalhar em Dublin, num escritório execrável. As primeiras férias, mas não a minha primeira viagem. Pois já antes a febre de viajar me levara a um fim de semana a Londres e outro à Noruega. 
Desta vez, não eram dois dias, mas dez. Depois, conforme confessara à minha mãe, encontraria emprego. Entenda-se a promessa, se é que é passível de haver quem encaixe esta: assim que voltasse de viagem, já teria trocado de escritório.
Comecei a trocar  antes, ainda estava em Israel. 
Estava em Jerusalem, debaixo de uns trinta graus que, ao fim de meia dúzia de meses em Dublin, já me pareciam desajustados ao meu dia-a-dia. Sem como conseguir fazer frente ao calor, enquanto a tarde caía, decidi dedicar algum tempo à Internet. Visto o email e a feira de vaidades do Facebook, ocorreu-me espreitar algumas páginas de empregos na Irlanda. Numa delas estavam à procura de Oficiais de Frankfurt à distância, digo à distância de Dublin.
Primeiro, fiz uma pausa para pensar. Depressa concluí que seria preferível não conseguir ir à entrevista por não estar no Èire do que nem sequer concorrer. Sempre preferi ficar fodido pelo que faço do que por aquilo que deixei de fazer. 
Pensado e feito isto, recebi imediatamente uma resposta escrita a pedir um contato telefónico. A que, por sigilo, respondi apenas que estava a viajar no Médio Oriente, sem telefone e que voltava na Segunda Feira. (Era tipo Quarta ou Quinta.) 
Nisto, pediram-me o contato do hotel. Que, não fosse o anti-semitismo tecê-las, me recusei a dar. Desolado, voltei ao quarto, onde deixara o telemóvel que, até então, não apanhara rede e que, vá lá saber-se como, voltara a estar ativo e registara as chamadas perdidas dos recrutadores. 
Corri para os computadores do hotel e pedi que me ligassem de novo. Tarde demais para que me ligassem hoje. Mas cedo para marcar uma entrevista para o dia seguinte, em que já estaria em Tel Aviv.
Dois dias depois, feita a entrevista telefónica horas antes do Yom Kippur, parti de Tel Aviv para Dublin, com paragem no aeroporto de Frankfurt. Dois dias depois de aterrar em Dublin, pedi a demissão do escritório execrável para assumir as funções de oficial de Frankfurt à distância. 

domingo, 2 de junho de 2013

Via Frankfurt I


Iron Bridge - Frankfurt, Vitor Vicente, Janeiro de 2012

Para dizer a verdade, nunca se pôde denominar de viagem. A não ser que force muito, só nesse caso, me posso referir às vezes que estive em Franfkfurt como a uma velha viagem.
É por isso que, em vez de ser parte da série "Variações sobre Velhas Viagens", este post dá o pontapé de saída de uma outra série. Será, sim, o primeiro do que chamarei de "Via Frankfurt".
O primeiro que, como querem os cabalistas, assinala o fim - o fim das viagens via Franfkfurt. Sejam por Frankfurt como trampolim para todos os sonhos, sejam por Frankfurt como  plataforma onde fazer uma pausa e lembrar que todas viagens têm  um regresso à realidade da rotina. 
Rotina que, de hoje em diante, deixará de ter com Frankfurt no horizonte.
Durante dois anos e oito meses, trabalhei à distância (à distância de Dublin) com o aeroporto de Frankfurt. Dadas as distâncias físicas, assim como o frio que daí advém, não guardarei desse aeroporto o mesmo carinho que guardo do aeroporto de Barcelona, onde trabalhei (fisicamente falando) durante dois anos. 
O aeroporto do Prat, que é como é conhecido o principal aeroporto da Catalunya entre os cromos aeronáuticos, tornou-se-me todos os aeroportos deste mundo e do outro. Especialmente os aeroportos espanhóis, onde, sempre que aterro e ouço qualquer gravação de aviso aos passageiros, volto a ter os vintes e tais anos que deixei de ter há um par de meses. 
O aeroporto de Frankfurt vai-me ficar, enfim, como a porta de embarque para as estrelas. 
Mas deixemos as estrelas e, de momento, fiquemos em Frankfurt. Essa escola onde aprendi que há mais mundo do que o mundo que vinha no mapa nas aulas de geografia, que há mais mundo do que pensava mas que isso não quer dizer que o mundo seja  maior do que nos ensinaram. Que todo e qualquer sítio é sempre um fim ficticio, mas sim o princípio doutra coisa qualquer.
Até quando, sem o saber, vindo de Tel Aviv, vinha também a caminho de me tornar oficial de Frankfurt. Mas essa é outra história. É para aqui chamada para dar o mote ao próximo post

sábado, 1 de junho de 2013

Helás Helsínquia!

Fim de tarde em Helsínquia, Vitor Vicente, Maio de 2013

Se me perguntarem qual a minha posição sobre a ideia de uma Catalunya independente, eu responderia que sou um catalanista cético. Catalanista por estar convencido de que se pode esquecer que se está em Espanha quando se está em Barcelona e arredores. Cético por crer faltarem infra-estruturas e condições básicas (exemplo: um exército) à Catalunya para constituir uma nação e por achar ridículo o conceito de império quando tratam por países as cidades onde se arranha catalão, desde a povoação de Perpignan até às Baleares, passando ainda pelos Sardos.
Na verdade, o Mediterrâneo erigiu uma muralha milenar e espiritual e que se assenta no mar. De momento, face ao poderio mediático do futebol,  a capital do Mediterrâneo é a capital da Catalunya. Mas, por estas bandas, é tudo uma questão de porto. E o porto que hoje é um bom porto, pode amanhã vir a ser outro.
Chegados a este ponto - digo, a este porto - é hora de partir para uma cidade de dois portos.
Ela é Helsínquia. Donde partem colossos para as ilhas circundantes e para as primas bálticas vizinhas, Tallin e São Petersburgo.
Ela é mais do que isso. Ela é o parque a pedir pic-nic. Ela é a arquitetura escandinavo-estalinista. Ela é o vento a esvoaçar os cabelos longos da muita malta do Heavy Metal. Ela é a humildade degenerada em higiene que deixa a desejar. Ela é o que é, ei-la Helsínquia!
Onde os invernos parecem infinitos e os dias de Verão se vingam e se arrastam, lentos, contra o apagão. Onde o Báltico beija a baía da cidade, sem a abraçar, sem assumir compromisso. Só para selar o acordo assinado a âmbar, entre as cidades bálticas que, ao contrário da comunidade mediterrânica, convivem sem ter que se tocar. 
 

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