sábado, 31 de maio de 2014

Deixar Dublin I

Pode parecer patranha, soar a contradição, mas é assunto sério. Todas as manhãs, quando acordo, dou um murro no despertador e dou graças a D-us por me dar mais um dia no mundo - às vezes, lembro-me ainda da canção "Se eu fosse um homem rico" do musical "O Violonista no Telhado", em que o personagem principal, depois de reconhecer perante D-us "que "não é vergonha nenhuma ser pobre, mas que tal condição também não é nenhuma honra", pede que lhe seja concedida "uma pequena fortuna".
Estas são, então, as minhas duas principais atividades matinais. As primeiras, sem as quais o dia não vai ser um dia. A que, desde Terça, juntei uma outra. A fascinante estranheza de me ter sido dito que, dentro de umas semanas, não vou mais acordar diariamente em Dublin.
Desde que sei que Dublin é uma questão de dias, toda a cidade passou a ter o estatuto do vento. Talvez não estejam a ver o que quero dizer com isto. Certo. É como se passasse a sentir a cidade, sem que a visse. Não a ouvisse mais do que em meros murmúrios. Como a um animal chamado aragem que beija, atabalhoado, que nem uma brisa. 
Sendo mais concreto, posso acrescentar que alguns amigos me parecem agora mais amigos. Enquanto alguns inimigos deixaram de o ser, quer dizer, deixaram de existir - ou passaram a ser simplesmente os filhos da puta que sempre foram. Tolero quase tudo, porque a quase tudo devoto um aristocrático desprezo. Vejo os defeitos de Dublin à escala do meu cansaço - e já não me esforço para alcançar a clareza. Em contrapartida, no que toca ao júbilo, emociono-me até à altura das estrelas, fico nostálgico com pequenos-nadas e com as noções do nunca-mais.
No fundo, é o preço da leveza. De correr atrás da vocação de nómada que me está no sangue, de correr atrás da minha sombra, através das veias - e chamar a isso de vida. 
E dizer: ou vou ser nómada, ou nunca vou ser nada.    

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