sábado, 31 de agosto de 2013

Micro-cidades dentro doutras Cidades II

Irish Jewish Museum - Dublin, Vitor Vicente, Maio de 2012

Em 2007, enquanto estava no encalço dos passos de Franz Kafka, fui parar ao bairro Judeu de Praga. Onde, vá lá perceber-se porquê, me senti em casa.
No ano anterior, dessa feita em Dublin, tinha-me perdido de mim próprio e fui parar ao Portobello, outrora o bairro Judeu cá (na altura, lá) do sítio. Estava perdido, tão perdido, a ponto de confundir um canal com o Liffey, que é rio que divide Dublin em dois.
Alguns anos depois, já em 2010, mudei-me para esta cidade, que, não me canso de dizer, foi o chamariz para me pôr a andar para fora de Portugal. Após o capitulo na Catalunya, acabei por chegar cá com um atraso de três anos e oito meses, a que ainda se devem acrescentar alguns dias e a cuja culpa se deve atribuir ao, tão célebre quanto anónimo, vulcão na Islândia que pôs em terra quase todo um continente. No meu caso, ainda me obrigou a vir por terra de Barcelona até ao Èire e, perdidas as primeiras noites de hotel que prudentemente reservara, a confiar um qualquer hotel ao taxista que me levou do Porto (pois, eu cheguei de Ferry!) de Dublin para a cidade.
O hotel era, por sinal, no Portobello. Se Dublin era um destino, o Portobello então era a terra prometida. Da Little Jerusalem da primeira metade do século transato, pouco mais sobram que um par de placas e um museu. Tudo o resto são sombras de judiaria que só vê quem por judiarias já andou noutras anteriores almas.
Assim são as sobras e as sombras da Little Jerualém. Que também são visiveis para quem leu "Little Jerusalém", um relato na primeira pessoa de Nick Harris, que não é escritor nem pretende ser nada que se pareça e simplesmente nos dá um retrato da rotina do dia-à-dia da judiaria. Aliás, de ilustre este senhor apenas também algum parentesco com os donos da afamada paderia Bretzel que, já me esquecia, juntamente com o Museu são as únicas judiarias que fazem parte da judria de hoje em dia.
De resto, como já é praxe, onde antes haviam Judeus ensimesmados, foi criada uma comunidade Muçulmana. Uma crescente comunidade Muçulmana. Que ao contrário da Judia, cuja tendência era crescer sem sair de si própria, parece querer assenhorar-se desde espaço, como quem o habita desde sempre. Quando este espaço é de todos. Desde os mortos para quem o bairro dá paz e guarida como memória, passando por aqueles que por cá fazem vidinha. Até aos que do bairro cuidam com o carinho de quem trata de uma criança. 

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Dito e Feito em Waterford

Reginald`s Tower - Waterford, Vitor Vicente, Agosto de 2013

Após quase três anos em que poucas foram as vezes em que estive sem viajar durante mais de três meses, tal período (três meses) de jejum só me poderia conduzir ao entusiasmo pateta do rato do campo que, pela primeira vez, tem a oportunidade de se embasbacar com as luzes da cidade. (O acontecimento inverso, isto é a estreia do rato da cidade em reduto rural, também tem o seu quê de pacóvio. Porque o entusiasmo de uma viagem, que é afinal onde queremos chegar, mede-se pelo quão longe nos leva o espírito).
No meu presente caso, ainda acresce que a viagem não me levaria mais além do país em que vivo (que, como não é o mesmo que o país onde nasci, pesa e dá outro impacto) e nem sequer me daria ao luxo de poder adormecer e acordar noutro lugar que não o colchão  de todos os dias (sensação que, diga-se em abono do apanágio da viagem, é importante praxe para nos apercebermos de que estamos longe).
Estamos então perante um entusiasmo que já disse pateta e que ainda adjetivarei de patente. Só por poder ir a Waterford fazer um frete. Pateta e patente, porém engenhoso, ao ponto de, agora pela minha primeira vez, conseguir conetar o telemóvel a uma rede sem fios de Internet.
Sem fios, eis como me senti assim que dei por feito o frete que, afinal de contas, fora o mote para Waterford. Tinha então uma tarde pela frente que, após o tal período de três meses de jejum e enjoo por não me encontrar a bordo, me parecia todo o tempo deste mundo e do outro.
Depressa entendi que existem ruas em Waterford que podiam muito bem existir em Dublin. Quem diz e escreve em Dublin, diz em qualquer parte da Irlanda. Esta ilha é o império do homogéneo. Imita-se a si própria com uma precisão invejável. 
É certo que, por um lado, em Waterford há Pubs a pontapé e fatos de treino andantes que se movem através da infindável mama do Welfare. Por outro, o facto de não ser uma cidade (cidade, segundo os standards cá do sítio) do interiorzão da Irlanda e estar a poucos metros de um cais de onde se parte e de onde se chega do Velho Continente, possibilita-lhe ter uma par de praças que jamais se podiam imaginar em Dublin, uma livraria de quatro andares com cafetaria incluída e um leve charme Francês.
Convém não esquecer que os Normandos andaram por cá, assim como os Vikings também deixaram os seus vestígios. É olhar para os passeios públicos de estilo medieval e ver que por aqui há muito desaproveitado potencial.
É a Irlanda. O Èire não engana. Por mais influência Viking, Polaca (esta, claro mais recente) e Normanda, por mais alto que tenha sido o sonho do tigre Celta, o tempo das ilhas é o tempo das ilhas. Tanto mais perfeito, quanto incompleto. Tanto mais incompleto, quanto imenso. Demorado e arrastado.
Waterford, assim dito e anunciado como no sul de uma ilha de que quiseram fazer um país, até parece tratar-se de uma constelação de resorts. Este ano o Verão foi um verdadeiro Verão. Muitos dos que viveram este Verão, provavelmente não verão um Verão como este no Èire. A Irlanda não está suficientemente a Sul para essa sucessão de solarengos verões. Só está suficientemente a Sul para se poder permitir a ser desgrenhada e desregrada. Em tudo o resto, a ilha está exposta aos caprichos do clima (e conduta) Celtas.  

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Micro-cidades dentro doutras Cidades I


Temple Bar - Dublin, Vitor Vicente, Janeiro de 2013

Existem muitas coisas nas cidades. Entre estas coisas, existem também cidades dentro das cidades. Assim sendo, a ser inventado um medidor de cidades, caber-lhe-á consagrar como cidade mais completa aquela em que mais couberem outras cidades. 
A primeira vez que vi uma cidade crescer dentro doutra cidade foi em Dublin. Era uma cidade que crescia com o crepúsculo - com um crepúsculo lento que tomava conta do céu e, como uma cortina, parecia chamar todos os participantes para aquilo a que se que haviam comprometido a tomar parte.
Tudo isto tomava parte no Temple Bar e nas ruas em redor deste bairro - um bairro que, durante o dia, parece semi-adormecido e que desperta da letargia à medida que se vai apagando a luz e tendo na mira virar a cidade do avesso.
No fundo, e isso era algo que ignorava na época, essa trata-se da missão dos bares e dos bairros de bares: estilhaçar o assertivo espetáculo diurno e, de seguida, anunciar a rainha da noite - que nunca será nenhum de nós, por, à semelhança da morte, também a própria noite ser soberana e servir-se das pessoas como mera paisagem que lhe asseguram a sucessão no trono e lhe reconhecem o reinado.
Mas não chamemos nem a morte, nem a noite. Nem o Temple Bar que, hoje em dia, me parece o palácio da inautenticidade. Para alguns, isto é para os que ainda cá estarão, amanhã há mais. O vulgo conformado dirá que amanhã é outro dia, sem se lembrar que ontem foi outro dia e que esse dia não volta mais. As cidades continuarão a crescer no seio das cidades, sem sombra de respeito pelo branco voto de silêncio imposto aos cemitérios.
Por aqui me fico. Sem mais querer acrescentar que assisti ao desdobramento de Dublin em dois, quando corria (na altura, parecia correr devagar) o ano de dois mil e sete, e eu estava nesta cidade com o estatuto de visitante (de viajante, por mais que acumule cartões de residente, sempre). 
Se me permitem mais um parágrafo, na época, pelo capricho dos verdes anos vinte, não se fizeram fotografias. No entanto, há textos escritos que não são para aqui chamados. Senão para dizer que, em vez destes, o que segue é uma sequência de Micro-cidades dentro doutras Cidades.  

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Diáspora de Dublin XXXI

Vende-se: Igreja  - Dublin, Vitor Vicente, Maio de 2012

Durante alguns anos, despendi o meu tempo de leituras entre os clássicos e os contemporâneos. Com o passar do tempo, continuo a ler os clássicos., já só leio os poucos contemporâneos que parecem ter centelha de clássicos, e também livros de divulgação que antes, meio por snobismo, meio por pressa, não achavam estatuto na minha estante, nem se estendiam na minha mesa de cabeceira (sim, eu leio e escrevo deitado e, sobretudo,na cama).
Hoje, como disse, dedico um bom tempo aos livros de divulgação. Ultimamente, tenho-me focado em divulgação de história. Não em livros que rebatem nos acontecimentos-chave da história da espécie humana. Antes no passado recente de pessoas, cujos retratos ou relatos, ainda muito têm em comum com as cidades do presente calendário.
No que toca a Dublin, entre outras coisas que não vêm agora aqui ao caso, fiquei a saber que um dos maiores bares da cidade - que  também é um dos poucos que não se trata de um Pub tradicional - foi, em tempos, uma estação de comboios. Para ser sincero, não me espanta. Sempre pensei ter-se tratado de um teatro ou de uma estação de comboios. Primeiro, por saber que, naquela área e em tempos, houve uma estação de comboios. Segundo, por toda a estação de comboios ter o seu quê de teatro e vice-versa.
Isto ilustra sobremaneira o atabalhoado aproveitamento urbanístico de Dublin. Posso adicionar outros dois exemplos: um Pub chamado "The Church" que, como o próprio nome indica, era uma igreja e uma outra igreja aqui do bairro que se tornou num complexo de apartamentos. Foram-se os fiéis, ficaram as pessoas e as pints. Estes são só dois exemplos, mas há mais pela cidade fora. Só aqui no Portobello está outra igreja para venda, com tabuleta e preço, como se fosse uma vivenda.  
Que vai ser do futuro, quando estivermos embalados num saco ou fechados numa caixa? Que construirão por cima do nosso cadáver? Por cima de que carcaças caminhamos? Continuará a Irlanda a improvisar neste mirabolante modelo de organização urbanística que nem se lembrou de ligar duas linhas de metro de superfície? Essa façanha é um clássico. Já se podiam aceitar apostas (atenção Paddy Power!) para adivinhar qual é a geração que vai ser contemporânea do grande acontecimento irlandês que vai ser ligar duas (as únicas existentes, assinale-se) linhas de metro de superfície que se encontram separadas. 

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Variações sobre Velhas Viagens XVIII

Anoitecer na marina de Tórshavn - Ilhas Faroé, Vitor Vicente, Abril de 2013

As Ilhas Faroé são, simultaneamente, umas ilhas inócuas e fodidas. Enquanto lá estamos, parece que não se passa nada. Quando na verdade, quer o queiramos, quer não, o tempo passa. Isto é, o nosso tempo. Pois o tempo das Ilhas Faroé, tal como o de todas as ilhas, é um tempo imenso e infinito. 
E o pior é que, findo o tempo que nos coube nas Faroé, há lugares no mundo que nos hipotecam. Esses lugares, é certo, existem. Como possibilidades tão plausíveis como o Pub ao virar da esquina. Mas não nos apetece. Em poucas palavras e muito simplesmente, ao pé das Faroé não são nada.
É então preciso dar um tempo preciso ao tempo. Precisamente, o tempo para que tudo volte a ser precioso. Até ao dia em que não tenhamos presente mais do que uma memória desfocada das Faroé e possamos voltar a desfrutar do que, no momento, relegamos para a segunda divisão dos verdes arquipélagos.
Até lá, as Faroé serão sempre o lugar tão fantástico como as cidades que só se podem ler nos livros ou só se passam na cabeça daqueles que olham o mundo à luz da lombada. 
No fundo, as Faroé ficarão no  álbum da memória futura, lado a lado com as fábulas e contos feéricos da infância. Senão o mesmo que o próprio período da infância.
Se as Faroé podem aspirar a ser algo figurativo, podemos dizer que são um farol que ofusca todos os oceanos daqueles que já não sabe para onde se virar, nem tem para onde viajar. Um farol  que nos diz que somos pouco mais que nada e tão frágeis como um náufrago. Que nos recorda que todos os regressos são irreais.
Após as Faroé - novamente, à semelhança da infância - só nos resta ir em frente. Não há modo de mandar parar o mundo. Às escuras, avançamos. Sem que, alguma vez, tenhamos pedido para começar, nem nos tenham explicado que tudo isto teria um fim.  

domingo, 18 de agosto de 2013

Com a de-vida distância XII

A Velha e a Vassoura - Goa, Vitor Vicente, Dezembro de 2011

Durante algum tempo, um dos meus melhores amigos só queria conhecer miúdas através da Intenet. Isto ainda antes do Facebook, aliás o meu amigo, entretanto, passados todos estes anos, nem se deixou contagiar pela febre facebuquiana. É que, já agora, convém esclarecer os mais novos e alguns mentecaptos que primeiro veio a Internet e só depois o Facebook. Quem diz a Internet, diz o sexo virtual. Cuja prática remonta aos tempos do Msn que, hoje, assim dito, parece do tempo do Ms-Dos.  
Houve então um tempo em que o meu amigo fazia amizades virtuais. Exclusivamente. Chegou a conhecer algumas pessoas, no tanto que é dado a conhecer alguém quando se está a cara a cara com alguém. Conheceu de tudo. Desde taradas que faziam strip através da web cam enquanto o meu amigo, do outro lado da web cam, exibia uma nota atrás da outra, até outro tipo de taradas que fodiam com ele, também em frente da web cam, enquanto outro tipo, também do lado de lá da web cam, assistia à coisa. No meio destas mulheres e destas web cam todas, houve, claro está, também casos de criaturas sem grandes caraterísticas. Mas destas, por serem despidas disso mesmo, não rezará a história com nada digno de grande  registo, senão a de pertencerem a uma massa anónima e sem côr. 
A que vem aqui dar o mote à história é uma senhora que dizia (digitalmente) ter quarenta anos e que o meu amigo foi conhecer ao centro da cidade. O encontrou, tal como o encanto, durou pouco. Na verdade, nem começou. Cito o meu amigo: "Conheces aquele tipo de mulher que tem quarenta anos e tem quarenta anos mesmo?". Respondi: "Conheço, sim". Explicou: "Ela era desse tipo. Quando chegou ao lugar onde tínhamos combinado, perguntou-me se eu era eu, e eu disse que não e fui-me embora. Ela era ela. E tinha quarenta anos e quarenta anos mesmo". 
O meu amigo vai também embora desta história. 
O que quero dizer com esta história é que existem pessoas que têm e aparentam ter quarenta anos, ou qualquer que seja a idade que tenham e aparentam ter. Quanto mais velhas sejam, mais tendem a parecer ter a idade que têm. São pessoas que vivem rente à realidade, que respeitam e respiram a realidade como se nada mais houvesse em redor. Que, ano após ano, como carneiros, continuam a cumprir o calendário. Religiosamente. Existem porque envelhecem e envelhecem porque existem. Enfim, envilecem.
Costumo ver essas pessoas quando vou a Portugal. Porque em Portugal permanecem, a apodrecer e a  hipotecar as possibilidades de partir, incluindo o mais importante que é a possibilidade de partir de si próprias. Mas este fenómeno não é  património do nosso país. Este é um fenómeno humano, de escala tão universal como a estupidez. Os portugueses, naqueles acessos absurdos de auto-estima, é que tendem a pensar que há coisas, sobretudo as piores coisas, que só se passam em Portugal. Claro que temos as nossas coisas. Mas isso é fruto de acidentes e incidentes históricos, geográficos e até (ó pedras duras, que precisai de ser polidas!) geológicos.
E essa é demasiada areia para esta camioneta e que se quer leve. Que quer viver longe por crer que longe ser o nome do único lugar onde se pode viver e manter jovem. Os anos aqui, neste lugar sem nome, são-nos anos bobos, de brincadeira. Até quando nos aburguesarmos não deixamos de o fazer de modo atabalhoado, um tanto ou quanto adolescente. É só mais uma experiência, mais uma metamorfose desta condição sem ciência, nem obrigação. O único imperativo é jamais nos rendermos à realidade, a última e única válida resistência é a do espírito. Assim, refratários, participamos do movimento do mundo, por estarmos tão integrados no mundo como no infinito. Assim, mau grado a morte, existimos, rimos e resistimos separados dos vivos com a de-vida distância. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Bilhete Inter-Países

Bilhete CP Lisboa-Madrid-Barcelona - Dublin, Vitor Vicente, Agosto de 2012

Este não é um bilhete banal, nem mais um bilhete entre outros tantos bilhetes. É o bilhete dos bilhetes e está guardado no baú dos bilhetes que não tenho.
Este bilhete é, ele próprio, um baú. Ou, pelo menos, uma gaveta a quem se confiam glórias, segredos e vergonhosas confissões.
Este bilhete não se trata de um bilhete qualquer. Com este bilhete vai-se a mais destinos do que nele estão escritos. Ainda que ocultos, aqui constam todos os vinte países (incluíndo o país de onde parti e onde voltei de visita, mas já lá vamos) em que estive enquanto vivi na Catalunya, mas também os outros vinte e dois onde fui, alguns anos depois, já a morar em Dublin.
Este é um bilhete com bilhetes dentro. Um bilhete desdobrável. Como o mapa do infinito. É um bilhete maneiras invisível porque dá a ilusão que mostra tudo quando, na verdade, mostra menos de metade.
Este é um bilhete em que até a origem do seu itinerário se tornou um destino. No sentido em que, cumprido o dito trajeto, a respetiva origem também se tornou um destino viajável. 
Este é um bilhete que transforma e que transtorna. Que transfigura pontos de partida e acaba com sentimentos de chegada. É certo que é um bilhete de caminhos de ferro, mas tem o seu quê de fluvial e aéreo. É um bilhete com direito à entrada no estuário das estrelas. No fundo, é um bilhete toda a terra e para contemplar o céu por completo.
Este é um bilhete-mestre. Um bilhete que abre outros bilhetes. Que arromba países que, quando se está em Portugal e por Portugal se permanece, parecem só existir nas enciclopédias. E que, mesmo para aqueles que os podem visitar sem deixar de viver em Portugal, parecem fazer parte da Volta ao Mundo em 80 Enciclopédias.
Este bilhete é-me mais do que um bilhete. É-me uma espécie de segunda via do cartão de cidadão, do próprio passaporte. É-me parte da pele, é-me e ser-me-á sempre o papel em que escrevo. Inclusive, deste ambulante apontamento. 

domingo, 11 de agosto de 2013

Com a de-vida distância XI

Cadeira e mesa vazias - Barcelona, Vitor Vicente, Agosto de 2011

Nas antevésperas de completar sete anos fora de Portugal, pergunto-me ainda por alguns porquês. Pergunto-me pelo porquê daqueles que partiram e pelo porquê daqueles que não partiram nunca.
Pergunto-me sem que a realidade me dê qualquer resposta. Ainda assim, autista, mouco aos ouvidos mudos do mundo, prossigo. 
(Para quem acha obra inútil e quem não continuar este absurdo caminho, fica o aviso para ficar por este capítulo).
Primeiro, pergunto-me por mim. Onde teria estado eu durante estes anos, se nunca tivesse partido? Quando pergunto onde, pergunto pelo paradeiro pensamento. Pois é do irrequieto poiso dos pensamentos que este questionar se ocupa. Que pensaria eu do estrangeiro? Tomaria-o como um espaço tão inacessível quanto as estrelas? Ou, simplesmente, não lhe faria caso, sem estar consciente de que viveria de costas voltadas para o mundo? 
Mas, por caso - e esta é, para quem não deu conta, a segunda pergunta - todos aqueles que partiram terão abraçado mais mundo que a pátria que os pariu? Já aqui (acho) referi os que partiram sem nunca terem partido, os profundamente provincianos que se disfarçam de toda-a-terra. Gente para quem a diáspora é um desperdício e que continua a viver o seu dia-à-dia como se nunca tivesse conhecido outra casa que não a sua, ou outra que à sua se pareça.
Depois, há ainda os que partem como quem procura. Que farejam a fastidiosa imbricação dos factos como se fosse feita de material feérico, como se pudesse ser cenário de uma fábula sem tempo, nem espaço. Estes partem como existem: sem explicações. Estes, sim, que são a falsa partida em pessoa. Nunca partiram porque nunca estiveram em lado algum. Se permanecem, é por pura preguiça e um certo sentido de inércia a que não é alheia a inocência e uma certa tendência para se irmanar ao infinito. Se querem coser-se a uma cidade, dali ninguém os tira ou dá ordem de saída. Na verdade, bem podem viver num cem-número de cidades que sempre serão um sem-número de sítios. Desta estirpe, entre a espécie, nunca me foi apresentado um exemplo. Só existem nos livros e nos ecrans das salas de cinema, em suma nos nobres salões dos sonhos que não são parte do património de nenhum século, nem da - desculpem se desiludo alguém - Paris do Século XIX. 
(E um pequeno parêntesis para os que, independentemente de terem partido pouco, muito ou mais ou menos, jamais terem partido de si próprios. Os que, num par de palavras, nunca se confrontaram com a sua consciência. Já era hora de a pôrem em causa, de lhe tirarem as calças e de a chamar de desavergonhada. Derrubado do altar, poder-se-á então ver os alicerces em que se fixa o ambulante circo das humanas convicções. O quão frágil é tudo o que se fixa: basta meio dia de dinamite e estilhaçam-se as convicções de toda uma vida, sendo que este processo é mais demorado quanto mais cretina tem sido a dita vida.)
Assim continuo a acompanhar este cais de pseudo-partidas e inconcretizadas chegadas. Jamais entendi o vai e vem dos vivos, quanto mais o dos mortos. A ambos assisto - hoje em dia, mais para o aterrado do que em posição de expetativa -com a de-vida distância. 
 

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