domingo, 28 de outubro de 2012

Variações sobre Velhas Viagens XII

Porta de Brandenurg, Berlim, Vitor Vicente, Novembro de 2009

Ainda a memória. A morte. A memória em permanente combate contra a morte.
Nem sempre as viagens que temos mais presentes são as mais recentes. Há viagens de que guardamos apenas uma vaga e imprecisa ideia, outras, ainda que feitas há milénios, parecem ter ocorrido ontem. Levando ao extremo, há viagens que nunca parecemos ter feito e viagens que parecem não terem terminado, nem terem como terminar. 
Houve um tempo em que me recusava a tirar fotogafias em viagem. Houve outro tempo em que me recusava a escrever. Houve ainda outro tempo em que não queria registar de maneira nenhuma as realidades que testemunhava, excepto na memória. Há sempre um tempo para tudo, quando nada se tem a perder - além da inxepiável culpa de termos nascido.
Às vezes, dá-me vontade de voltar às cidades onde estive e nada nem ninguém o diria. Seria o regresso real.  Do meu mundo nada lá ficou e de lá nada trouxe de tamanho suficiente para poder dizer que o trouxe comigo.
Às viagens pedem-se episódios. Pitorescos ou plenos de preguiça e de paz, tanto faz. Despojar-se de epísódios é igual a viver sem nunca ter existido. É como fazer do funeral uma cerimónial memorável para todos, menos para o defunto. 
Ficam por mencionar as viagens feitas de memórias intraduzíveis. Tão particulares e pessoais que se tornam impossíveis de partilhar. Estão condenadas a enterrar-se no esquecimento. A serem construídas com o material imune ao eco, com o material oco dos caixões. Ao mutismo gritante dos mortos. 

domingo, 21 de outubro de 2012

Variações sobre Velhas Viagens XI


Belfast Cab, Vitor Vicente, Outubro de 2011

Talvez algumas viagens apenas valham a pena pelas memórias. Talvez todas as viagens. 
São os extras que nos enchem a existência. As excentricidades elegantes, os encontros que o mundo nos marcou na agenda, sem antes nos consultar a disposição para o quotidiano.
No dia antes de viajar para Belfast - no tanto que é possível viajar para Belfast, para quem vem de Dublin - nesse dia de preparativos, encontrei-a. Era o dia em que fazia um ano e meio que deixara Barcelona, em direcção a Dublin, alguns anos após ter partido de Portugal para Barcelona e após de Portugal ter planeado partir para me mudar para Dublin.
Mas deixemos essa encruzilhada. Concentromo-nos no caminho que me levou a este encontro, que é como quem diz na eternidade descida à terra.
Entretanto, já numa festa e em Belfast - no tanto que é possível estar em festa numa cidade feia e agreste como Belfast - deixei que uma certa senhora celta me mexesse na berguilha. Quis congratular o gesto com um beijo. Sem sucesso. A noite de hotel em Belfast que eu não marcara revelou-se um banco do Bus Eireann que liga as Irlandas a altas horas da madrugada.
Excesso de confiança, de soberba. Semanas antes, numa cidade chinesa chamada Guanzghou, outrora conhecida como Cantão, houvera fugaz história com uma garota do Uganda. 
Não houve bela em Belfast. A haver uma bela em Belfast, houve na véspera.
As vésperas são parte da viagem. Tanto quanto o dia que se segue ao dia do regresso. Tanto quanto os encontros que, por estarem escritos nas estrelas, são patrocinados pela eternidade.
Ela já era parte da viagem sem o sabermos. Ela já era parte da vida sem o sabermos.
Talvez algumas viagem apenas valham a pena pelas memórias. Talvez todas as viagens. Talvez o próprio mundo. Talvez a própria vida. Ou mais não se anda a fazer deste mundo do que um mero lugar onde se veio dar uma volta. 

sábado, 20 de outubro de 2012

Diáspora de Dublin XIX


O anoitecer e o amanhecer são a mesma coisa - Reykjavík, Vitor Vicente, Junho de 2011

Tenho trabalhado com tipos de toda a parte do mundo. Desde Nepalenses de metro e meio chamados Dick, passando por Franceses a bocejar vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, até Alemães devotos ao dever como Merkel manda. Poucos Irlandeses, por na Irlanda não haver falta de trabalho mas sim  por não haver falta de gente que não quer trabalhar, e também por a maioria dos escritórios por onde passei serem guetos de expatriados. Alguns Espanhóis, alguns Catalães e mais Catalães muito Espanhóis do que Espanhóis muito Catalães. A tudo isto e, tanto em Espanha (digo, na Catalunya) como na Irlanda, se têm intrometido bastantes Italianos, tão dados aos serviços mínimos como os Espanhóis (não digo,  Catalães) e os Irlandeses e nunca tão serviçais quanto os Portugueses na condição de emigrantes.
Um destes Italianos, certa manhã, acompanhado doutro italiano, entrou no Shuttle Bus que, todas as manhãs do mundo, transporta cargas de ensonados (Franceses, Irlandeses e não só) ao East Point, um dos parques empresariais mais arranjadinhos de Dublin, localizado numa das áreas mais desarranjadas da cidade.
Arranjar, lá tive eu que arranjar a carantonha quando o tal Italiano me foi apresentado como um novo colega, pelo seu compatriota e que não era outro Italiano qualquer, mas um dos Managers da empresa. De imediato, nessa manhã nublada, como nubladas tendem a ser todas as manhãs neste lado do mundo, congratulei-o por ser o seu primeiro dia no escritório. Esforcei-me por parecer animado com a nossa rotina laboral, mais para agradar ao Manager (na altura, eu ainda não tinha contrato efetivo) do que para propriamente com o propósito de animar o recém-chegado. 
Passaram-se meses e, já eu pertencia aos quadros da companhia aérea e podia voar ao preço com que a chuva cai em Dublin, quando também o rapaz acabou o chamado período de prova. Logrou atingir os objectivos, recebeu o cartão da empresa e todos os descontos inerentes a ser staff
Depois, pouco depois, descobriu que estava doente. Emagreceu. O estômago nem o deixava comer. Desapareceu.
Vi-o visitar-nos um par de vezes. Queria voltar à empresa. Queria voltar a voar. 
Não voltámos a trocar mais palavras. Ficou-me a manhã em que chegou, pela primeira vez, à empresa. Em que parecia mais um entre tantos, vindos de um dos pigs para o menos pig dos pigs.
Sejamos parte dos pigs ou tomemos alguns países por pigs, ou nem sequer que saibamos que significa essa sigla, somos todos mais um - mesmo. A morte também é mais uma, mas chega para nós todos.   

sábado, 6 de outubro de 2012

Que horas são em Haaretz? VIII

Putin Pub - Jerusalém, Vitor Vicente, Junho de 2012

É comum verem-se bandeiras irlandesas à porta dos pubs de Dublin.  O patriotismo, por estas bandas, está longe de ser serôdio e nada tem a ver com nacionalismos de naftalina, a tresandar a peido e a termas.
Lado a lado com a bandeira irlandesas, é costume erguerem-se as bandeiras do Leinster ou, se decorrem importantes competições internacionais, de outras nações. Como sempre e como em todo o lado, há as mais habituais e as mais interditas.
Cabe aos intrépidos erguerem as interditas. Por estas bandas - infelizmente, não só por estas bandas - não há bandeira mais interdita do que a de Israel. A façanha cumpriu-a o Foley`s, um pub situado em frente à casa de um dos muitos deputados anti-semitas e à entrada de Dublin 4 que é como cá, à falta de códigos postais, se tende a designar  a zona chic
Entre as quatro paredes do Foley`s, mais propriamente no piso de cima, qual condição de clandestinos, lá nos reunimos. Embora tenha conseguido contar quantos Jack Daniels tomei, não consegui contar quantos gatos pingados lá estavam Talvez trinta. Todos a tentar fazer ouvir a maldita voz de Israel no hostil Èire
Lá fora, ao frio, ouvia-se "Free, Free Palestine". Quem? O comité de camaradas do costume. Quem mais poderia ser senão aquele staff que se desdobra e se desunha para estar em todas as manifs anti-Israel, anti-Yankees e anti-isto & aquilo. Têm até que trabalhar por turnos. E que montar tendas na Dame Street que, de há um tempo para cá, ocuparam como verdadeiro colonatos do caralho. 
Os cães passam, enquanto a caravana, sorrateira e sarcástica, saudável, simplesmente passa. Sem outra reivindicação que a liberdade de expressão e o direito à diferença. O singelo pedido de poderem existir tal como são. 

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Amor de Mediterrâneo III

Las Ramblas - Barcelona, Vitor Vicente, Setembro de 2012

Barcelona é mais do que uma cidade. É uma super-cidade, o supra-sum do conceito de cidade. Barcelona é um bar a céu aberto. Barcelona é o o único pedaço de céu que D-us nos deu para desfrutar como um bar aberto.
Basta aterrar nas Ramblas. (As Ramblas são, aliás, o único sítio onde se aterra e se dá a impressão de se ter  ascendido às alturas). Basta arrastar-se, com vocação de vagabundo, nas Ramblas para se perceber que a realidade das Ramblas é uma e a do mundo é radicalmente outra. Inclusivé, a da cidade circundante, de que dizem (e que  nos custa a crer) se encontra em crise. 
A crise nem sempre nos permite pagar a boémia. Em contrapartida, Barcelona oferece-nos o prazer sem preço da praia. (Ao fundo das Ramblas, desejosos de desaguar no Mediterrâneo, é ainda possível aos pobres respirar a plenos pulmões).
Dito assim, o prazer parece a custo zero. Apenas parece. Esta cidade só se oferece a quem a merece.
Posto isto, deixei para trás tours turísticos para brancóide entreter, e ofereci um rally citadino pelas oito casas onde vivi nos primeiros oito meses na capital da Catalunya. (Feito num redondo oito, claro está). Das quais, duas foram dois hostels, onde vivi durante uma semana e dos quais mudei de um para o outro um par de vezes para poupar três euros que, na época, se traduziram em três baguettes de tortilha.
Época épica. Não havia sombra que deitasse abaixo os meus sonhos, nem assombro que me desassossegasse os desejos. O pragmatismo era para os parvos. Romantizar a realidade era tão matemático como pisar as Ramblas.
As Ramblas que, por muito que por lá rastejasse, nunca me pisaram como me pisou Portugal. 
 

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